quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Contos Reunidos

CONTOS



ANÁLISE NO BANHEIRO



Ela está de frente para uma grande pia de pedra, uma pedra verde escura, olhando seu reflexo em um grande espelho do banheiro. Uma luz branca, clara, vinda da luminária, ilumina seu rosto. A forma de seus belos seios transparece pela blusinha de seda que ela veste. Ela usa uma saia meio longa, um corte no tecido mostra parte de sua perna até a altura da coxa. Um espaço, nu, entre a saia e a blusa deixa aparecer seu umbiguinho com um piercing enfeitado por uma pequena pedra branca. Ela está se apreciando, sabe que é perfeita. A porta se abre. A moça olha para o lado. Sorriso maravilhoso. Ele fecha a porta devagar. Observa-a por um curto tempo que é infinito. Eles estão se provocando com os olhos. Ele se aproxima, agarra seu corpo pela cintura, cola ao seu contra a pia de pedra atrás deles e quando vai beijá-la, ela afasta o rosto. Ele adora a provocação. Ambos estão apreciando aquele jogo de sedução e provocação. Ele sobe sua mão direita pelas costas dela, acariciando seu corpo até a altura da nuca. Ela aperta forte a bunda dele. Não resistem. Estão se beijando e se agarrando por algum tempo. Nenhuma ação é técnica ou forçada. É só o tempo, e eles. Afastam seus rostos um do outro. Algum tempo se encarando. Ele diz:
- Você não é o que eu procuro.
- Como assim?
- Eu criei você perfeita para mim. Você sabe, você é perfeita...
Ele acaricia a perna dela, com sua mão e, parando na barriguinha, continua:
- ... Mas você está longe de ser perfeita da forma que eu quero. Só que o que eu acabo de perceber, é que essa é uma visão muito egoísta minha. Eu não posso procurar a perfeição, eu tenho que torná-la perfeita. Isso só vai ser possível se você tirar essa máscara que você criou. Mas, se você fizer... Você morre de medo do que pode me dizer, não é?
Ele a puxa mais forte, junto ao seu corpo. Ela está brava.
- O que você está dizendo? Por que você não pode curtir sem começar a viajar tanto?
- Não entenda o que eu acabei de dizer como uma crítica errada. Você não é perfeita, e, eu estou longe de ser também. A questão é que se eu só curtisse, eu estaria fugindo. Fugindo do que me deixa distante de você. Eu posso estar o mais perto...
Ele aproxima seu rosto do dela.
-... Que eu sempre vou estar distante se eu não mostrar o que eu penso e como eu penso. Você é igual. Você já deve ter feito coisas que não quer me dizer de forma alguma. O interessante é que eu não vou julgá-la. Eu só quero entendê-la.
Ela o empurra, brava, e diz:
- Eu quero um homem, não um analista!
- Você é quem sabe. Você pode procurar em todos os homens o que quiser. Talvez, você até sinta algum prazer com eles, dê umas boas trepadas, é, talvez. Mas vai ser difícil você achar algum que possa fazer você enxergar o que eu estou tentando dizer. Eu quero mostrar a você quem eu sou e, se você conseguir fazer o mesmo, nós vamos ficar juntos. É você quem sabe...

Ela sai. Está brava. Bate a porta.
Ele passa a mão sobre sua cabeça e, olhando para o espelho, tenta entender porque torna as coisas simples tão complicadas. Vê se não tem nenhuma sujeira em seus dentes e sai.




EUNUCO, DONA EUNICE E DE COMO SE DEU A CANNABIS NA HISTÓRIA



A vida nos proporciona alguns fatos engraçados e, por mais que você não queira começar a contar, você vai acabar contando. Eu não sei quanto tempo eu vou demorar em narrar a história dessa família, não sei se vou contar em capítulos, nem sei se vou contá-la inteira, só sei que me deu vontade de começar a escrevê-la. Vou escrever por vontade e por gratidão à minha memória que tem se mantido fiel em meus anos de vida . Sempre que eu penso ser tolice começar a escrever, me vem o medo de minha memória me abandonar julgando imperdoável, tamanho desprezo e arrogância, eu ter encontrado algo de maior valor na vida, então, eu narro.
A história que eu vou contar é sobre Eunuco. O nome, quem escolheu foi seu pai, que se chamava Nurandir. Assim, surgiu a brilhante idéia de unir o nome da mãe com o do pai e, o cu, como normalmente se fala o seu nome, ninguém explica até hoje. Dona Eunice, uma dona que completou quarenta e nove anos mês passado, aproveitava seu tempo com suas aulas de Gramática e seus afazeres de casa. Por sorte do rapaz, desde pequeno ele é conhecido como Nuco. O pai de Nuco morrera quando ele fizera dezesseis anos, o que fez dele, hoje com vinte e um anos, um exemplar chefe da casa e rapaz muito culto, pois ele passou a se empenhar muito em seus estudos. Na casa viviam Nuco e dona Eunice. Eles moram, há muito tempo, no mesmo bairro, de casas humildes e pessoas simples, esses em que é difícil passar pela rua e não encontrar um grupo de pessoas divididas entre filhos, avôs e pais, sentados naquelas cadeiras cuja armação é de alumínio e o encosto é feito com aqueles fios de plástico que prendem na pele, cada cadeira de uma cor diferente, azul, laranja, vermelha. O bairro era uma comunidade, uma verdadeira família para os dois.
Nuco conseguira uma renda financeira própria montando e vendendo, com um pouco de acréscimo, computadores. Renda que não era suficiente para pagar sua faculdade de Administração de Empresas, mas que lhe garantia alguma liberdade como viajar, curtir umas baladas e comprar maconha, o que ele se recusava a fazer utilizando o dinheiro da mãe, principalmente a última delas. Nuco começou a fumar com dezoito anos e se adaptou muito bem com a cannabis. Foi nesse mesmo ano que Nuco começou as vendas de computadores e o namoro com Ana Cláudia, namoro sério, pois namorico existia desde sua infância junto da vizinha, quando eles costumavam se beijar, escondidos, no Gato Mia. Gato Mia, para quem não sabe, é aquela brincadeira na qual a molecada entra no quarto, apaga a luz e aí é só alegria, pelo menos nas turminhas mais avançadas é assim que funciona. A vida do rapaz estava muito boa, as vendas cresciam e ele já tinha a confiança de alguns clientes, o que o levou a planejar abrir uma pequena loja no ramo, no fim deste ano que era, também, o último de sua faculdade.
De um tempo para cá, Nuco começou a contar muito de seus planos, seus amigos, namorada, estudos, para sua mãe, assunto que a deixava muito contente por acompanhar o crescimento de seu filho. Contudo, tinha um assunto que Nuco não conseguia conversar com dona Eunice. Maconha. A véinha, como ele a chamava, era um tanto puritana. Considerava a erva como algo do Capeta, apesar de não ser religiosa. Várias vezes demonstrou seu repúdio ao ver alguma matéria jornalística, ou quando falava de algum aluno que, segundo ela, jamais aprenderia análise sintática, pois entrava com os olhos tão fechados na sala, que nem a lousa via. Nuco entendia a postura da mãe, afinal, era o conhecimento dela sobre a droga, conhecimento que ele respeitava. Essa situação incomodava Nuco, pois ele sentia vontade de discutir com a mãe o assunto, para, assim, não encarar o que fazia como um erro e uma infantilidade. Os dois eram responsáveis, eles conseguiriam conversar, pensava ele. Assim seria, mas como eu disse, a vida nos proporciona mudanças inesperadas. Mudanças tais que valem a pena serem narradas.
Eunuco foi comprar um jornal na banca e, do nada, do nada não, porque nem o nada é do nada, mas ele viu o que poderia ser a resposta para sua situação desconfortável. Uma tiragem especial de uma revista científica respeitada sobre a maconha. Comprou e, depois de ler, descobriu a história da droga, descobriu coisas importantes como a afirmação de que a maconha tem a metade dos índices de dependência comparada ao álcool, de que a droga faz mal sim, mas que é um mal que poderia ser diminuído muito se houvesse um uso legítimo, bem como o seu poder medicinal, coisas que ele nos contou com orgulho por ter conhecido, e que poderia utilizar como argumento com sua mãe. Nós bem que aconselhamos ele que a idéia não poderia dar muito certo, mas sou obrigado a admitir que às vezes me surpreende a capacidade persuasiva dos livros e das palavras. Portanto, não usem esses pequenos argumentos que eu citei sobre a maconha para justificar o seu uso. Procurem ler para criar seus próprios argumentos.
A cena se passou, mais ou menos, dessa forma. Dona Eunice estava tomando seu café da manhã, cortando um mamão, enquanto Nuco se sentou e preparou um café com leite. Ela estava ouvindo uma MPB que vinha de um radinho da cozinha. Nuco pediu para ela lhe passar a manteiga.


Dona Eunice
Quer mamão?

Nuco
Eu fumo maconha!

Um silêncio um tanto cruel ficou entre a manteiga, o mamão e os dois.

O que se passou, depois da queda da faca da mão de dona Eunice, foi uma disputada discussão na qual ela fez perguntas do tipo, você tá devendo dinheiro para traficante? você é viciado nessa porcaria? você ainda consegue raciocinar contas de álgebra? e o menino, ainda relutante, só conseguia responder um não seco àquele bombardeio de questões. Chegaram à conclusão de que dona Eunice leria o livro sobre a maconha e que, então, eles conversariam, mas que antes disso, Nuco não chegaria perto da droga. Ele só fez um pedido, para que ela lesse rápido. Conseguiu, por sorte, desviar do mamão que lhe foi arremessado em direção à cabeça.
Agora é que começa a estória, pelo menos para mim. Tenho percebido que eu posso me sentar e escrever palavras desconexas, uma ao lado da outra; certamente, eu teria um texto, alguns autores que eu leio fazem isso. Contudo, isso seria muito chato e, se você não escreve curtindo, então não perca seu tempo, sua narrativa será chata e seu texto, também. Quase caem lágrimas de meus olhos quando percebo que sou privilegiado em poder contar os acontecimentos que me foram narrados e, agora, sou eu que tento torná-los o mais realista possível para todos vocês . Dois dias se passaram normalmente. Tudo rotineiro. Dona Eunice foi dar suas aulas e Nuco seguia com sua vidinha marota sem maconha. Então, novamente nó café da manhã e, dessa vez, sem mamão na mesa, Nuco se arrisca em perguntar.

Nuco
E então, mãe? Começou a ler o livro?

Dona Eunice
Até que o começo está interessante. Nem sabia que maconha tinha uma história.

Dona Eunice dá uma golada no café.

Nuco
Eu falei para você! A gente não pode ir tirando conclusões sem pesquisar, sem ler.

Dona Eunice
Eu não conclui nada ainda! Fique longe dessa coisa maldita.

Quando nós ouvimos o que se passava com Nuco no futebol que costumávamos tirar todo Sábado, mas para fugir da city, curtir uma piscina e fumar um, foi a maior zoação com o cara. Confesso que nós não íamos acreditar nele se Aninha não confirmasse que estava, um dia desses, vendo tevê com dona Eunice, e ficou espantada ao vê-la contestar uma prisão de uns jovens que estavam dando uma bolinha. Nuco até saiu da abstinência, com nosso apoio, pois considerava um progresso tremendo os papos que andava levando com sua mãe e, a gente tinha que admitir, o cara merecia. Contudo, foi na volta deste mesmo churrasco que Eunuco, nosso conhecido Nuco, teria uma surpresa que mudaria o cotidiano daquela casa. Não me prendo aqui em esticar a narrativa, pois você, leitor precoce, já deve estar se achando esperto, imaginando o que iria acontecer. Pois foi isso mesmo que aconteceu!
Nuco entrou em sua casa e viu sua mãe, sentada no sofá, assistindo um desenho do Tom e Jerry. Seus olhinhos, os dela, estavam brilhando, e ela estava com um sorriso inconfundível no rosto. O menino sentou-se, analisou um pouco a cena, e não sabia o que dizer, confesso que eu também não saberia. Dona Eunice, então, resolve cortar o silêncio.

Dona Eunice
Esse desenho é muito bom, filho. Muito bom!

Nuco
Mãe. Você está chapada?

Dona Eunice
Ah, eu tinha que provar para entender o que você me dizia, e para saber se o que eu lia era verdade.

Nuco leva as mãos à cabeça e tenta assimilar o acontecimento que presencia.

Nuco
Você tá ligada que você não pode fazer isso né, mãe?

Dona Eunice
Nossa, escuta o som desse desenho, que estranho filho! Olha o som da panelada no rato. Parece o mesmo de quando eu sentava a chinela em você, hahaha. O que você me perguntou, filho?

Nuco
Nada, daqui a pouco a gente conversa, eu vou pegar algum refresco na geladeira.

O coitado já estava um tanto desnorteado, mas ficou pior quando abriu a geladeira e se deparou com um quite larica comprado pela sua própria mãe. Estavam lá, na sua frente, duas latas de leite condensado, um pote de dois litros de sorvete de creme e uma tubaína. Não bastasse isso, a velha era profissional, há de se dizer, havia dois pacotes de bolacha sobre a mesinha da cozinha. Um de maisena e outro daqueles toscos, coloridos, de chocolate. O menino pira.

Nuco
Você não fez almoço, mãe? E todas essas porcarias aqui?

Dona Eunice
Ah... eu não estava com vontade de cozinhar. Então, fui ao mercado e comprei umas coisinhas que me deu vontade de comer. Experimenta a maisena com o sorvete, fica uma delícia.

O menino pega o pote de sorvete que está derretendo na geladeira, segue desorientado para sala enquanto diz:

Nuco
Olha isso, mãe! O sorvete derretendo, sujando toda a geladeira. Mãe, isso vai ter que mudar, vai ter que mudar já!

Dona Eunice
Filho, calma, é só um sorvetinho. Isso eu limpo em um segundo. Um não, meio. Vem ver desenho e fica calmo.

Nuco volta para cozinha com o sorvete na mão. Vê as bolachas. Aquela cena toda se passando em sua cabeça. Ele acabara de criar um monstro. Um monstro com habilidades domésticas e que fazia um bolo de cenoura com cobertura de chocolate como ninguém. Ele até tentou contornar a situação, se acalmar, que mal podia haver naquilo tudo. Agora sua mãe fumava, muitos de seus amigos curtiriam a situação. Não, ninguém curtiria! Aquilo sim era um pesadelo, um pesadelo digno de ser contado, um pesadelo como poucos, como pode, juro que nem ri muito quando lembro dele nos pedindo conselhos e, nós, pedindo para ir visitar Dona Eunice, pois, se o bolo já era bom, imagina com maconha.
Dona Eunice, no momento, quer comprar uma moto. Justo ela que tinha pavor de motocicleta. Ela explica que é só para sentir a mesma brisa que ela sente entrando pela janela enquanto assiste tevê. Eunuco tenta conter as idéias de sua mãe, mas eu realmente acredito que essa professora de Gramática jamais irá voltar à rotina, muito menos, se for para voltar consciente. No momento, é tudo que eu sei. Eu disse como a vida pode ser realmente interessante, não disse? Agora, eu vou curtir um bolo de cenoura, com uma deliciosa cobertura, mandado especialmente para mim por dona Eunice. Eu amo essa véinha!

To Be Continued........(quando? ... eu nem imagino!)


REUNIÃO OCULTA



O menino está ali, na sala de jantar, estático enquanto seu velho conta empolgado como conseguiu o troféu na prova de tiro no Bourbon¢s Clube. Ele diz como se sentiu poderoso acertando cinco dos nove tiros bem no centro do alvo enquanto seus amigos ficavam observando, do lado de fora, do cercado privado para os atiradores. O placar dá a nota. É dele, o troféu é do paizão. O pai se delícia empunhando sua pistola cromada automática, confinado carregado com nove balas, o menino só observando. A mãe do infeliz passa pela sala e aperta suas bochechas, aquela coisa cretina que as velhas fazem, e segue para o quarto. Então o velho tem a doentia idéia de deixar o filho segurar a arma. Para quê? O moleque acidentalmente aperta o gatilho. Na mesa nós vemos tanto cérebro que parece uma porção de aperitivo de miolo. O guri está ali, abominando a cena e, então, acontece o melhor. Sua mãe entra na sala para ver o que aconteceu e antes que a velha possa tomar consciência da atrocidade toda, o pirralho, sem querer, vira para ela e a pistola dispara no peito da coitada. O moleque não consegue assimilar o que acaba de fazer com sua família. Estão todos ali, exterminados no meio da sala. Bom... é mais ou menos isso!
Por quê ele mata os pais?
Ele não mata os pais. É tudo um acidente. O interessante é que acidentalmente, o guri escapa de viver dominado por dois seres bizarros como aqueles.
Ninguém aniquila os pais, no meio da sala de jantar, por acidente, seu animal! Empurra os canapés para mim.
Concordo. Acho que isso não é muito real, você podia pensar em deixar isso mais comum, mais cotidiano. Se bem que podia rolar um acidente lá em casa. Meus pais agora estão querendo demonstrar atenção com perguntas do tipo, como foi seu dia? Como foi na escola? E o namorado? Isso é um saco, era melhor quando o amor deles aparecia na minha conta bancária. Só, um acidente.
Calma lá! Isso é só um roteiro. Não estou a fim de ser cúmplice de assassinato. Sem essas idéias, mulher. E, vocês não sabem nada de escrever histórias. São esses tipos de situações que atraem a atenção das pessoas. Os que se julgam normais, ficam chocados. Os pirados, se divertem. Os bestas, bom, esses vêem qualquer bosta que aparece! E quem falou que isso não é cotidiano, vocês não lêem notícias, não?
É, pode até ser que de certo!
Vai dar! E então, conseguiu a locação?
Minha prima vai liberar a piscina dela, já está acertado.
Bem que podia liberar ela junto, aquela gostosa. Diz aí?
Até que um sexo durante as gravações ia ser bom para relaxar. Mas se você for ver, cara, no meio daquela correria toda não dá nem para pensar numa fodinha rápida. Por isso eu escrevo roteiros, meus caros amigos, começo e paro quando me dá vontade.
Vocês homens são tão idiotas. Não percebem nada, só a imagem. Minha prima é lésbica, seus babacas.
Não me vem com essa idéinha. Por quê mulher faz essas coisas? É só uma mina virar as costas que as outras disparam a metranca sem dó.
Ainda mais se a mina é rica e linda. Se for famosa então, está fodida na boca das lêndeas.
Vão se foder vocês dois. Eu não estou fazendo intriga de ninguém, não! Isso é coisa de puta. Puta hipócrita, ainda. Só estou falando sobre um fato normal que eu sei que é verdade.
Como você sabe? Conta aí. Tenho maior tara! Conta os detalhes, vai.
Devia ter ficado calada. Falar com criança, dá nisso. A vida é da menina, meu! Que você tem a ver com isso. Por quê eu fui dizer? Foi só eu beber um pouco demais desse vinho francês para eu falar essas merdas mais do que deveria.
Calma lá! Criança aqui ninguém é mais! Tenho mais o que fazer e não vou sair por aí falando nada sobre a vida dos outros, diferente de você.
É isso aí. Problema é dela se ela é sapata. Mas que eu vou socar uma bronha pensando nisso, eu vou!
Como você pode ser tão podre?
Estou pensando naquilo que você falou sobre puta hipócrita. Tipo, puta legítima é quem admite ser puta e hipócrita aquela que disfarça?
Puta legítima, mesmo casada com um bacana, morando em uma cobertura, talvez, filhos, sabe que é puta e até fica mal por causa dessa situação. Ela acaba se enfiando em remédios, ou dá uns tiros de dois por dia para aquentar a pressão. Outro dia eu estava pensando sobre isso, saca?
Eu iria preferir uma mina que me fizesse acreditar que ela é uma puta ponta firme a correr o risco de viver com uma puta hipócrita. Do quê você está rindo?
Nossa, cara, nem ouvi sobre o quê vocês estavam falando. É que eu lembrei de uma coisa com a história da bronha, puta, é muito bizarro. Beleza, eu vou contar. Eu estava em casa, de boa, sem fazer nada e me deu vontade de bater uma. Só que eu estava no meu quarto e não queria sair de lá, então, nossa meu, bom, eu coloquei o pinto para fora da janela e mandei ver de lá mesmo, do décimo primeiro andar, espalhando meu pólen pelo condomínio todo.
Você é muito animal. É melhor você se tratar, cara.
Você é doente, seu podre. Chega a me enojar.
Somos todos, não somos?






TIROS NA VITRINE



Os donos de bares não sabem que todo balcão deve ter um apoio para os pés! Ainda mais, se for com esses banquinhos compridos que fazem a gente ficar bem em cima, ow legal!, quase vi os seios dessa morena que parou ao meu lado. Fico aqui, esperando o garçom preparar minha bebida, perdido com minhas pernas balançando para todo lado. Mas, escuta só: essa morena ao meu lado não precisava de tanta maquilagem, ou maquiagem, nem sei, mas aposto que ela ficaria bem melhor naturalmente, e, está luz azulada da casa ajuda muito, faz milagres, dá o maior tom na pele! Opa! Valeu chefia, com pouco gelo e no capricho, volto sempre para fazer as honras da casa. Dou uma girada no banquinho, mais um bico no decote da morena e outro no uísque, estou pronto para seguir até aquele parapeito enfeitado, cheio de frescura, ali na frente. Vou andando, esbarram em mim, uísque na camisa azul nova, não foi nada, fica tranqüilo, meu rei. Sinto que minha boca já está um pouco mole por causa do álcool. Engraçadas essas pessoas se divertindo lá em baixo, mexendo suas cabeças para todo lado, esperando que dela saia alguma coisa. Pista de dança lotada, festa grande. Fui chamado por conhecer o dono e vim por achá-lo gente boa e, também, porque não agüentava mais minha própria companhia naquele apartamento pequeno no qual eu moro, ou melhor, vivo, não, sobrevivo. Só me faltava ter estourado o encanamento da pia da cozinha vazando água em cima do microondas da vizinha de baixo. Maior prejuízo, justo agora que eu planejava comprar uma luneta para ver melhor a vizinha do prédio da frente e a lua, que tesão, as duas, quando querem. Preciso manter a postura, quem me ver vai pensar que estou de mau humor aqui nesse canto, mas na verdade não estou. Mandei meu mau humor embora há algum tempo. No seu lugar surgiu um cara sensato com um pedacinho mal, bem escondido. Só não gosto de danç...
- Oi.
Fui pego de surpresa.
- Por um acaso, você tem um isqueiro?
- Não, nem tenho. Respondi rápido, tirando minha mão do bolso para realçar para moça que não tinha mesmo.
- Por um acaso, isso é meio besta, não é? Calma, eu explico.
A minha pergunta foi meio besta! Ninguém vai ter um isqueiro por acaso porque o cara tem que ser muito chapado ou alienado para entrar numa, sei lá, padaria, chegar até o balcão, reparar no uniforme estranho da garçonete, existem as profissionais, são aquelas que usam umas boinas vermelhas, já viu?, mas, então, você vai, pede um isqueiro, separa o troco da carteira, segue até o caixa, paga, escolhe uma goma de mascar do seu gosto, diz de nada e, eu ainda vou esperar que alguém vá dizer que comprou o isqueiro por acaso.
Meu deus! Estou apaixonado.
- No mínimo eu saberia que você é um mentiroso, mas você nem tinha um. Viu só, perdi a chance de te conhecer verdadeiramente, agora vou ficar na dúvida!
- Ainda bem que eu não tinha! Seria difícil eu imaginar seu plano e toda sua psicologia envolvida com o acaso e um isqueiro, sendo assim, eu ia responder que tinha e você me acharia um mentiroso.
- Boa resposta. Você é sincero e, talvez, possa guardar segredos.
- Não vá confiando muito. Nunca te falaram que quem fica quieto no seu canto, em um lugar de movimento como esse, ou é louco ou é tarado?
- Não, mas eu estou a fim de correr o risco! Quer sair? Dar uma volta?
Eu não ia ter nada melhor para fazer ali, já tinha tomado três doses de uísque, sou responsável pelos meus atos, mas, confesso que fiquei meio angustiado quando entrei no carro dela, achei aquilo tudo meio rápido demais, mas ela parecia legal e eu estava naqueles dias que topava até uma caminhada na guerra, com balas por todo lado, pessoas caindo ratátátá, era só relaxar e esperar o que fosse acontecer...
A moça dirigia um tanto rápido e não ligava muito para semáforos. Ia me contando sobre seus tratamentos na enfermagem do pronto socorro de um grande ambulatório e que estava abalada por causa da piora de estado de um antigo paciente e amigo dela, um velhinho que tinha um tumor no intestino. Foi ele quem tinha lhe ensinado a atirar em provas de tiro no clube que freqüentavam. Realmente deve ser complicado lidar com vidas, eu disse a ela.
- Pega minha bolsa, no porta luvas, para mim.
Ela começou a mexer na bolsa e tirou dela uma arma. Era uma pistola cromada. Não sei explicar o porquê, mas foi a primeira coisa que pensei. Pronto! Ia ser apagado ali mesmo por uma louca psicopata, já tentando destravar a porta para saltar.
- Te apresento meu ursinho de pelúcia, Léu.
Ela pós a pistola em meu colo. Bom, ao menos ela não vai me matar tão cedo.
- O Léu dorme comigo toda noite.
- Que inveja, eu disse.
Morto, mais pelo menos mando bem com uma última cantada, pensei.
Ela estacionou em frente a uma grande loja. Tinha uma vitrine toda iluminada e cheia de manequins que vestiam belos vestidos longos de baile. Era época de Natal e as lojas estavam abarrotadas de mercadorias novas e caras. Realmente parecia um baile, melhor até daquele no qual estava. Refletores iluminavam cada manequim como se fossem astros em uma noite de prêmio, só faltavam os repórteres e as câmeras. Aliás, a rua inteira era assim, toda iluminada. Com a grana que se gastava de luz elétrica, o Papai Noel poderia voar pelo país inteiro e sobrariam presentes. Mas, deixando o social de lado, a real é que era bonito mesmo.
- Você quer escolher uma cor?
Uma cor? A não, isso era o fim! Essa moça tinha alguma psicose em assassinar travestis e eu era a bola da vez. Ia ser um presunto desmoralizado na praça, logo eu, pessoa tão decente. Uma cor! Dei um riso irônico. Irônico isso, sendo que a ironia sou eu.
- Não, nem quero! Respondi logo.
Ela pegou a arma do meu colo e descarregou no manequim que vestia um bonito vestido azul. Que cena impressionante! Destruiu parte do peito e um pouco do decote enfeitado, solto nos seios.
- Nem foi tão bom, gosto quando arranco alguma parte. Quer tentar?
- Melhor não.
- Qual é, deixa de ser careta? Ow, que chato! Acabou a munição do Leuzinho.
Beleza, pensei. Vamos embora antes que venham os homens com o camburão. Foi só até eu ver o trabuco que a moça tirou de trás do banco dela.
- Deus do céu, que porra é essa!?
- Espingarda dose milímetros, cano curto.
- Isso eu estou vendo, mas o que ela faz aqui?
- Para o Léu não ficar sozinho, comprei o Bernardão. Segura, acho que ele gostou de você.
- Pesado seu ursinho e, perigoso seu robby. Já podemos ir?
- Não, não. Faz tempo que eu não passeio com o Nardão e ele está triste. Só que ele me machuca com o tranco. Você vai ter que disparar!
Notei que não ia ter jeito, antes infrator foragido que preso. Para atirar eu tive que me debruçar no colo dela, o que foi bom, que mulher bonita! Apoiei o cotovelo esquerdo na janela dela e...
- Peraí. Você nem vai escolher? Sabe quanto custa um lenço nessa loja?
Fiquei meio com ódio. Devia ser caro mesmo. Mirei em um longo vermelho que não existe nem em filme, bem no peito.
Bam! Puta que pariu! Acertei bem no pescoço. A cabeça vôo longe. Que estrago que faz esse brinquedo!
- Uau! Escondendo o jogo, né? Há tempos não via um desses. Belo tiro!
Fomos embora. Acho que não fui um bom menino esse ano, de modo que não vou ganhar presente. Ela riu de mim.
- Por um acaso, acho que vai sim!




A GELADEIRA




Há, mais ou menos, uma hora atrás entrei em casa para saber que horas eram e me esqueci de ver o relógio. Lembrei-me nesse instante, nem sei o porquê. Talvez três, três e meia. Também, não me importa muito, nem sei que dia da semana estamos e estou com fome.
Olhando-a daqui de fora, sem dúvida, é uma casa grande para duas pessoas. No nosso caso, o espaço livre não chega a ser um problema. Gostamos de espaço entre nós e na maior parte das vezes, entre nós mesmos, entre nossas cabeças, eu com a minha, ele com a dele. É como se fosse um refúgio, uma fuga breve para que exista um aprendizado no reencontro.
Quase não nos vemos quando queremos não nos ver.
Moramos em um lar sem luxo. O que não diz que não tenham belos espaços confortáveis, só que não há excesso, futilidade.
Passamos boa parte de nosso tempo em casa, portanto, temos que variar o possível para não nos enjoarmos de vivermos aqui. No quintal tem uma mesinha branca e algumas cadeiras para curtir o sol da manhã, ou do final da tarde, na verdade, não importa a hora, usamos quando temos vontade. Plantamos algumas árvores de médio porte há uns meses. É muito saudável mexer com as plantas, cuidar delas. Elas nos retribuem com frutas frescas, como essa acerola que estou comendo, e mantém um visual bonito com suas flores coloridas.
Utilizo um dos quartos desocupados para pintar meus quadros. Vendo alguns deles nas exposições que organizo, poucas vezes, pois gosto de pintar sem compromisso, demoro à terminar um quadro, de certo modo, nunca sei quando eles estão prontos e só acabo vendendo se eu enjoar de ver ou se faltar espaço em casa para os novos. Eles fazem parte de mim e se eu os vender será difícil vê-los de novo. Gosto de pensar que as pessoas que os possuem...não, não. Eles não podem compreender o que eles significam para mim. Poucos vêem os sentimentos, muitos a técnica. Até eu mesma me esqueço do que estava sentindo enquanto pintava. Aquele mesmo que vejo ao lado da churrasqueira. Um mar remoto batendo sobre o rochedo onde está um homem calmo observando o céu. Isso é técnica! O que senti está dentro da cabeça desse homem, talvez, na água que espirra violentamente pela rocha ou, até mesmo, naquele raio de sol que se diferencia dos demais. A técnica permanece, os pensamentos seguem vagos pelo olhar de cada um.
O serviço que me garante um conforto financeiro, no meu caso, sem muito esforço, consigo com as aulas de dança que leciono há algum tempo. Sou uma excelente dançarina, sem modéstia.
A modéstia é a máscara do orgulho. Desconfiem do excesso.
Matheus ainda tem uma certa insegurança financeira quanto aos seus livros, mesmo sendo colunista de um famoso jornal.
Dizem que o escritor nunca gosta do que escreve. Acredito que a insegurança dele é um dia acordar e não conseguir mais escrever. Entendo seu medo.
O certo é que conseguimos uma estabilidade, palavra estranha essa, que nos proporciona viver bem, sem muitas besteiras desnecessárias, mas com liberdade para comprar algumas coisas que nos atraem.
É muito bom quando não temos uma dependência e podemos jogar com o dinheiro, viver com ele e não para ele.
Sinto-me estranha pensando desse modo quando se há tanta miséria em meu país, mas se entendermos bem o que eu quero dizer, não se trata de diferença financeira, mas de diferença no modo de pensar, e isso, pensar errado, atinge tanto pobres como ricos.
Pensando melhor, acredito que só vão entender onde pretendo chegar as pessoas que conseguem dinheiro fácil. Os herdeiros, as madames de casamento, raros artistas entre outros mais.
Pensando melhor ainda, esses não querem me ouvir e nem eu mesma quero.
O mundo tem espaço para todos. Uns espaços são maiores, outros menores. Alguma reclamação? Façam para o senhor lá de cima.
Caso ele não possa ajudar: virem doentes; loucos; santos; padres; anjos; bandidos ou artistas. O ramo de escolha é vasto.
Observo, nesse momento, nossa sala. Mobília rústica. Bonito lugar, calmo, e essa geladeira. A geladeira que Matheus ganhou do pai dele. Diz o pai, que gela a cerveja melhor que qualquer freezer. Estranha; interessante.
Daqui onde estou escuto o gelo bater no copo de cristal que Matheus segura enquanto abre a velha geladeira para pegar um pouco mais de vinho branco. É um belo som. O da porta gemendo.
Bebo um pouco de vinho que Matheus me serviu.
Esperava meu misto ficar pronto na torradeira pensando naquilo que iria dizer a ele. Foi quando ele entrou na sala.
Brinco com umas frutas de cera na mesa. Natureza morta, fome real!
Sei que ele está bravo porque fui à uma exposição de fotografia e comentei que fiquei um tempo conversando com o Marcos, um antigo namorado. Quando notei que ele estava irritado, falei com mais vontade ainda sobre o ensaio e a viagem que Marcos faria para fotografar uma tribo desconhecida na África.
Só queria causar um ciumezinho bobo. Causei uma tempestade na calmaria que andava nosso lar. Melhor assim. Sinal de trabalho para ambos.

Sabe, o frio transforma a água em gelo. É uma mudança de estado físico.
Pronto! Lá vem ele com seu discurso desconexo.
Você gosta de mudar meu estado, me ver pirado. De me deixar em dúvida!
Viro para Gabriela. Linda, sentada na beira da grande mesa da sala de jantar.
Não, eu não gosto. Você inventa suas dúvidas e me culpa por isso.
Geladeira vermelha, de ferro. Matheus se apoia nela. Antiga.
Não entendo por quê você faz isso. Você fica vivendo no seu mundo dos sonhos e acha que tudo que está na sua cabeça é verdade. Você não pode ficar me cobrando pelo que não existe.
O que ela diz é tão verdade quanto a beleza da cena que vejo. Cruza as pernas, com elegância.
Pode ser que isso seja verdade. Eu entendo que é, mas você não sabe sobre isso, não sabe o quanto a realidade já me foi ruim. É por isso que, de repente, eu imagino um mundo falso.
Gosto de vê-lo tão acuado em seus medos. Anda até o outro lado da sala. Pára me olhando.
Eu nem poderia saber. Você nunca me fala muita coisa. Viver calado está lhe fazendo mal. Você não sabe mais o que é a realidade e o que é sua imaginação.
Muito direto. Ele não gosta. Acho que fui má.
Ela foi má. Continua linda.
Você quer ver algo real?
Corro em direção à geladeira e me atiro nela.
Ele está se contorcendo no chão. Ferro antigo.
Sei que não deveria. Gosto dele. Vou até lá.
Por quê você faz isso?
Daqui de baixo, vejo Gabriela. A geladeira ao lado. Dói.
Meu braço dói muito. Digo rindo.
Sinto pena e raiva de sua infantilidade. Piso em um dos gelos caídos.
Por quê você faz essas coisas? Não consigo mais entender você.
Vou-me embora.
Vejo Gabriela se afastando. Ainda no chão, chamo.
Gabriela, Gabriela!
Continuo andando. Deixo ele crescer. Escuto:
Eu preciso de você, preciso da sua ajuda.
Espero um pouco. Volto até ele. Uma criança. Ao lado, o copo de cristal.
Leva sua mão até a boca e tira dela um pouco de sangue provocado pela pancada.
Levo minha mão até a boca. Sangue. Mostro à ela.
Isso é real, Gabriela.
Estico minha mão e seguro seu braço. Pirado.
Por quê você tem que ser tão pirado?
Quero-a mais próxima de mim. Trago-a para perto. Perfeita.
Por quê você tem que ser tão perfeita?
Ela me dá um beijo, leve.
Segura um pouco o lábio dele com os seus, esticando-o enquanto vai se afastando.
Dói.
Tem um gelo embaixo de mim. Levanto com ela. Pergunto:
Você quer ir à Exposição do Dali ou ao Teatro amanhã?
Seguimos abraçados.
Talvez.
Vamos andando até o quarto.

É uma bela sala.
Um lustre de cobre ilumina a grande mesa de jantar. Um vaso, com plantas amareladas, no centro. O piso é de ardósia verde combinando com a pedra que reveste as prateleiras sobre os armários perto do chão. No canto direito estão os pratos e objetos de mesa, em cores variadas, empilhados em um armário de cimento cru tratado. Caído, próximo à um forno elétrico antigo, o copo de cristal que Matheus segurava, ainda inteiro.
No reflexo dos gelos que derretem sobre o chão, pode-se ver a imagem da velha geladeira de ferro vermelha.



APELIDO CARINHOSO


Na sala, sentados quase sobre o encarte do último álbum que a banda lançou há dois meses, perdido entre duas almofadas, uma amarela, outra azul com listas brancas, estão Ivan Tales, o vocalista e compositor da banda, e Val, sua namorada e modelo. Eles estão se preparando para assistir à coletiva que Ivan concedeu a um grande número de repórteres da televisão e do rádio. Ivan entrou na entrevista com cara de famoso, mostrando que entende do ramo. Famoso tem que saber ter cara de famoso, não qualquer famoso, famoso estrangeiro. Tem que deixar na cara, literalmente, que acabou de sair de uma overdose, olhos de quem não dorme há três meses e de que não liga á mínima para os fans porque não os enxerga, mais ou menos, a mesma que eles estão neste momento, na sala do apartamento recém comprado com vista para praia, enquanto comem uma batata de pacote cento e vinte gramas e bebendo um uísque, cabelo estilo ventania e tudo. Ivan espera uma pouco em pé no centro da mesa, senta-se, olha para frente e sorri de leve, fala com o assessor do seu lado, os dois riem muito para que os babacas que não escutaram nada daquilo que disseram fiquem curiosos, aceita o copo de água que colocam em sua frente, um curto gole, Estou pronto, que comece logo essa bosta! Pensa ele, de certo. Uma moça sentada na terceira poltrona, da esquerda para direita, da segunda fileira, vestindo um belo casaco preto e com o cabalo castanho preso com uns palitos com desenhos japoneses, faz a primeira pergunta.

As músicas desse álbum estão mais calmas, com melodias mais leves em relação aos outros álbuns lançados pela banda. Essa mudança foi proposital? Vocês já sabiam o tipo do som que você iria escrever em todo o disco?
Realmente, nosso som está mais leve, mas isso foi somente um momento da banda. Juntamos alguns trabalhos parecidos que vínhamos tocando e fechamos o som. Nós pensamos em ter uma coerência de ritmo nos sons para garantir uma estrutura completa na obra inteira que é o disco. Tirando a faixa oito e onze que são mais agitadas. Eu não faço o som e as letras pensando no álbum, faço para mim e para banda. Essa é a vantagem de nosso som ter nascido dos bares e festas de conhecidos. Não temos que abaixar a cabeça para as gravadoras porque nosso som vende como ele é. Se não for assim, pego minhas coisas e volto a tocar nos bares. Não me importa muito todo esse conhecimento, a fama, o que é legal é que um maior número de pessoas fica conhecendo nossa música.

Qual é... Oi Ivan, eu, aqui atrás. Qual foi sua formação nos estudos? Você foi um bom aluno?
Olha, até quando eu agüentei seguir em uma escola, eu fui sim. Não me incomodava de ir para escola, mas aquilo tudo começou a ficar chato porque a música parecia ser mais interessante, me dava maior liberdade. As pessoas, os professores deveriam ser treinados para entender o tipo de aluno que pretendem ensinar, não sei se é muita viagem o que quero dizer, mas prejudica muito o desenvolvimento de alguém viver entre crianças estúpidas que não pensam direito e que só sabem se zoar. Pode até ser como é, mas deveria ser diferente. Por esses motivos, pessoas como eu não duram muito dentro de uma sala de aula. Eu gosto de movimento, coisas que me chamem à atenção, música, filmes, exposições de arte. As excursões no colégio eram legais. Fora isso, os livros que leio me ensinam bastante. Gosto quando componho lendo algum autor bom, me ajuda a pensar coisas bonitas.

Ivan, você comentou sobre os livros, e, em outra entrevista você disse que os livros te educaram mais que seus pais. Você ainda tem problemas com seus pais?
Minhas respostas me prejudicam muito porque as pessoas não entendem direito ou da maneira que eu pensei quando quis me referir ao assunto. O que eu digo é que os livros me trouxeram uma visão diferente de coisas que eu não saberia se continuasse acreditando em tudo que ouvia dos adultos e outras pessoas que eu conhecia. Meus pais me deram a educação que eles podiam, a educação que eles aprenderam, mas que não era suficiente para mim. Já fiz coisas erradas, besteiras por ter raiva de alguma situação que agora consigo entender melhor. Todos nós somos pessoas diferentes, e, foi bem complicado conseguir um espaço entre isso tudo. As pessoas julgam seus sonhos, seus ideais e até que você concretize um pouco desses sonhos, até que eu concretizasse, não seria aceito como sou. Alias, esse é um problema que vejo, seja nas pessoas ou em qualquer coisa. Vi os pais de um garoto brigando com ele em uma loja porque ele não queria ficar ali vestindo camisas apertadas. Não se joga bola ou se empina pipa com camisa e, na verdade, ninguém faz mais isso. Os pais não sabem mais educar seus filhos porque eles não prestam atenção nas mudanças das épocas. Estão com idéias ultrapassadas para tratar sobre drogas ou sexo. Houve uma evolução muito rápida nos valores e eles, nem seus filhos, sabem lidar com isso.

Ivan, você teve algum emprego antes de entrar para banda?
Trabalhei um tempo de atendente em uma rede de supermercados, como vocês sabem. Ao contrário do que pensam, não me incomoda dizer isso pelo trabalho que eu fazia, me incomoda o fato de eu ter ficado um tempo fazendo o que eu não queria só para poder ter um pouco mais de liberdade. Aprendi coisas legais nessa época. Aprendi que esse lance de trabalho, dinheiro, essa correria, tipo, a realidade besta não me interessava muito. Isso me deixava mal e agora eu tenho minha liberdade sem ter que me sacrificar como muitos por ai...

- Eles não falaram de mim, não? Pergunta Val, na sala.
- É sobre isso que eu quero falar querida. Já estava começando a ficar puto com essa coisa de responder perguntas para essas pessoas. Resolvi zoar com eles quando eles perguntaram sobre nós.
- Ai... ai, eu não gosto disso. O que você falou? Pergunta ela assustada.
- Nada de mais, eu acho?
- Deixe-me ouvir, vai.

Surgiram alguns rumores que o grupo quebrou alguns móveis e aparelhos no Hotel em que se hospedou na última apresentação. O quê realmente aconteceu?
Eu não vou responder questões que comece com o impessoal. Se você quer saber algo, diga quem falou.

Vocês não têm tido muita confusão com drogas desde que o baterista, Paulo Reis, disse que havia abusado um pouco da heroína na noite que espancou uma fan com a baqueta.
Ele não espancou ninguém. O que chega até vocês é muito distorcido. Aquela mulher foi nos procurar no camarim, ela estava bem doida e pedia para o Paulo brincar com ela, saca, tipo deve ser uma tara, um desejo. Existe muito disso. Quanto às drogas, o que a imprensa não vê o coração sente.

Você tem uma namorada muito bonita. Como você encara as fotos sensuais que ela fez?
Nós temos um comportamento muito bom quanto a isso, saca, nosso trabalho. Vocês conhecem as fotos dela e minhas músicas, conhecem os boatos e fofocas, mas não sabem o que a gente é, quem somos em nossa vida. Nós vivemos, e, não nos importa o que está aqui fora. Ela é realmente linda, muito mais do meu lado do que em uma revista.

Quando vocês estão em um momento de intimidade vocês usam algum apelido carinhoso?
Você quer saber se a gente usa algum nome diferente no sexo? Se eu tenho algum nome especial para ela?

A reporte sem graça afirma que sim
Vadia, às vezes, puta, e, raramente vaca.

A sala estremece.
- Era isso o que eu estava tentando ti dizer...
- Por favor, você pode ficar um minuto quieto.
- Que isso? A não! Você está gravando. Você sabe que eu detesto essas entrevistas e pedi várias vezes para você não gravar
- Cala essa maldita boca fodida do caralho. Eu quero ver se entendi bem.
Play.

... Usa algum nome diferente no sexo? Se eu tenho algum nome especial para ela?... Vadia, ás vezes, puta e raramente vaca.

- Você disse. Seu babaca do caralho! Que merda é essa que você foi dizer!
- Eu estava nervoso com aqueles putos de merda me perguntando tantas bostas. Eu fiz como ironia, só para zoá-los.
- Lembre-me de ser irônica te chamando de brocha na minha próxima entrevista.
- Que isso, meu amor, isso é bem diferente.
- É, para você é diferente, né? Pois pessoas que eu conheço vão ver isso. Pessoas que eu detesto e que devem estar me zoando nesse momento. Que raiva eu tenho de você, seu merda.
- Meu amor, eu sei que eu fiz mal. Foi culpa dessas bostas desses repórteres. Você viu a cara da puta que me fez a pergunta. Ela estava louca para ouvir algo do tipo, não deve ouvir a muito tempo. Ai, apelidinho nhe nhe nhe, são todas umas vacas. Amor, tenta entender...

Dezessete minutos e trinta e três segundos depois:

- Vadia! Sua vadia. É assim que você gosta, não é?
- Mais devagar, seu canalha... Desgraçado.
- Ah sua puta, você quer assim devagarzinho, assim bem de leve.
- Isso swirss bandido canalha vai seu puto...
- Sua vac... va....va Vaca... am!

“E, não é mesmo o amor, lindo?”

DR. CUBO



- Olha só, o Dr. trouxe alguém para o almoço, sinal de trabalho.
- Que bom! Há algum tempo não temos movimento nessa casa.
Era esse o assunto que tratavam os dois seguranças que vigiavam a entrada da casa de Ernesto Mello de Lima Filho, conhecido como Dr. Cubo pelos chegados, ao verem, através do enfeite de vidro ao redor da grande porta de madeira na entrada, o chefe e o convidado sentados à mesa de jantar.
Dr. Cubo estava pronto para degustar um salmão assado com alcaparras e batatas, enquanto Osmar permanecia olhando, pois não aceitara, por educação ou medo, não se sabe, o convite para almoçar.
Um olhar distante, profundo, transmitindo-nos um misto de serenidade e melancolia. Difícil de se notar por debaixo das pálpebras, seu olhar vago, carregado de vivência. Entre os olhos, três riscos na pele se faziam aparecer enquanto falava. A ruga do meio era um pouco mais profunda que as outras ao lado. Sobrancelhas finas regiam as expressões faciais. Estatura média, um pouco acima do peso. Totalmente calvo. De fala calma, pausada. Assim era Dr. Cubo.
Sentado à sua frente, um homem sem marcas do tempo, ou experiência, se assim preferem. Moreno, olhos claros, talvez uns trinta anos. Trajado socialmente com belas roupas importadas, sapato italiano marrom. Osmar era um dos funcionários de uma das casas do senhor que saboreava maravilhado o almoço.
Dr. Cubo tinha-o como filho.
- Você sabe que comer bem é um dom cedido por algum poder maior, uma dádiva! Quando degustamos um sabor em nossas bocas devemos fazer com calma, sentir bem o gosto daquilo que estamos comendo.
Osmar estava realmente angustiado por algum motivo. Não chegou nem perto da comida e do excelente vinho tinto de mesa que lhe fora oferecido em um pequeno copo de cristal. De certo, sabia ele que Dr. Cubo só abre as portas de sua bela casa nas montanhas por algum motivo sério. Aquilo não era uma festa e nem uma confraternização de velhos amigos. Osmar havia feito algo errado e, por esse motivo, havia sido chamado até ali.
- Nosso paladar é um caminho que une os mais profundos sentidos de nossa mente com um prazer exterior. Isso é interessante, sabia? Um grande número de pessoas não valoriza, quando pode, esses raros e prazerosos minutos da degustação. Esse processo, degustar algo, é uma adaptação pela qual o sujeito deve passar, com todos os riscos que dela decorrem, pois é uma adaptação interna com algo externo. Muitos dos nossos problemas mentais, dos conflitos que observamos em nossa vida, a vida que se desenvolve ao nosso redor, surgem por causa de conflitos de adaptação como esse. Você não quer provar nada mesmo?
Osmar pega um pouco de vinho se sentido intimidado enquanto observa o senhor comendo com prazer o seu belo almoço.
- Vou provar um pouco do vinho, senhor. De comida eu estou farto, é que eu comi algumas coisas antes de vir.
Mentira! Osmar estava louco para provar aquele banquete, mas sua preocupação não o deixava pensar direito.
- Você sabe, eu só convido para vir em minha casa de campo as pessoas que me demonstram confiança e respeito, pessoas com as quais eu me sinto bem em dividir minha companhia. Quantas vezes você veio à minha casa mesmo?
Osmar começou a demonstrar preocupação, suava um pouco. Serviu-se mais uma taça de vinho.
- Algumas, doutor. Foram bons momentos, não foram?
- Sim, bons momentos.
Dr. Cubo se viu satisfeito e empurrou seu prato para o meio da mesa. Tomou um gole da bebida.
- Aceita uma sobremesa, senhor? Perguntou-lhe um dos empregados que veio recolher seu prato.
- Não, obrigado. Estou um pouco indigesto, acho que o molho vermelho que comi ontem não me fez muito bem. Mas estava excelente o salmão. Obrigado.
O empregado se retirou. Dr. Cubo apanhou um dos guardanapos que estavam empilhados em um adereço de prata.
- Gosto de fidelidade nas minhas amizades e no trabalho que administro. Nunca fui rude ou desonesto com pessoas que não merecessem que eu agisse desse modo com elas. Mas, mesmo mantendo um certo otimismo e esperança em meus relacionamentos profissionais, contínuo me decepcionando com quem eu recebia como parte da família.
Osmar está congelado em sua cadeira. Leva a taça, tremendo, até sua boca.
- Isso costumava me destruir por dentro, ficava rancoroso, sem ânimo para continuar aproveitando os pequenos prazeres, prazeres que nem enxergava quando estava doente por causa dessa poluição de inveja e ódio. Mas sabe, o tempo é a melhor escola que podemos ter, e espertos são aqueles que sabem aproveitar, ainda com um pequeno tempo de vida, o tempo de experiência que os antigos vão deixando pelo caminho com seus livros. Eu não entendia de onde vinha um sentimento tão baixo em direção a alguém que só pretendia o bem, que só lhes ensinava seguir por caminhos seguros e decentes. Eu gostaria de entender e, para entender, acabei criando o Cubo.
Osmar derruba a taça sobre a mesa. O líquido vermelho se espalha pela toalha branca circundando a moldura do prato no centro do pano. Ele tenta conter o vinho que se espalha rapidamente levantando a ponta do pano que cobre o lado oposto ao que o vinho segue por sobre a toalha da mesa.
Dr. Cubo pede para que se acalme, “depois os funcionários dão um jeito nisso”.
- Você já foi algumas vezes até o Cubo comigo, Osmar, mas como muitos que vão até lá, acho que você não sabe direito o que é aquilo, para quê ele existe. Geralmente as pessoas, os visitantes que têm a oportunidade de conhecê-lo, ficam maravilhadas com a grandiosa estrutura que eu criei durante anos e nem se perguntam o porquê daquilo tudo existir.
Osmar, o que você acha que é o Cubo?
Enquanto dizia o que queria, Dr. Cubo se levantou e apanhou um bombom que estava dentro de uma bombonier de vidro ao lado da mesa de jantar e foi se sentar em uma poltrona confortável num canto onde podia se ver a floresta ao fundo por uma grande parede de vidro. Osmar, ainda na mesa, lhe respondeu sem muita confiança no que ia dizendo e já entendendo onde o seu chefe queria chegar.
- Senhor, O Cubo realmente é um lugar muito bonito, gosto de ver aquele monte de cientistas e médicos, salas com dezenas de máquinas e são muitos, parece coisa de cinema.
- Sim, sim, é tudo muito bem planejado e todas aquelas pessoas são extremamente profissionais em tudo que fazem. Sem modéstia, são os melhores que eu consegui encontrar. Nós desenvolvemos muitas coisas importantes lá dentro, sabia?
- Sei sim, doutor. Já li alguns livros de lá. Um que falava da alma, muito bom viu. E sua exposição, a exposição de quadros e esculturas que tem em seu museu, aquilo parece coisa de outro mundo, coisa do estrangeiro.
- E não são somente os quadros e esculturas que nós temos. Criam-se grandes compositores lá. Você já viu uma partitura de música, assistiu á uma ópera ou ouviu Beethoven?
- Não senhor. O último nome eu conheço, mais nunca ouvi.
Dr. Cubo chamou um de seus empregados e lhe pediu para que colocasse, no aparelho de som, aquele álbum especial. Osmar estava mais calmo com o desenvolver da conversa, mostrava em seus olhos, tentava acreditar que o chefe retribuiria com gratidão tantos anos de amizade, afinal, foi só uma escapadinha com a mulher dele, que ele mesmo devia saber que era uma vagabunda.
“Como pode alguém tão culto viver com uma puta safada igual aquela? E agora, por um deslize com a safada da vadia estava encrencado. E o lance da venda das drogas utilizando os serviços da empresa como fachada ele nem devia saber é, estou certo, o Dr. não ia me castigar só por um pequeno erro. Por quê fui cair na lábia da vadia? Ela me provocou, aquela, aquela gostosa, puta, puta...”
- Lindo, não é? É a Nona. Um dos raros prazeres.
- Sim, doutor. Sem dúvida é.
A voz que Osmar ouviria tinha um tom de quem havia atingido o ponto de quem desejasse, caminhando lentamente por entre frases dispersas para aproveitar com extrema crueldade, até sentir o momento para, então, lhe causar pavor e acabar com suas esperanças. Essa foi a voz com a qual Dr. Cubo continuou seu discurso.
- Você sabe, eu não cobro fidelidade da mulher que vive comigo. Não preciso que ela me seja fiel por saber que somos só companheiros no sexo. Eu já tive a mulher que amava e que estaria comigo a vida toda se não fosse um câncer, mas, bom, nós viveríamos juntos sem que eu precisasse pedir ou cobrar, pois nos amávamos, sim esse sentimento que tanta discórdia causa, mas que é tão fácil de compreender quando se está com a pessoa que se ama. Sim...
Dr. Cubo falava olhando vagamente pela floresta atrás dele. A luz do Sol, que entrava pela sala, preenchia parte do canto em que ele estava sentado. Osmar percebeu que, ao contrário do que pensava, já havia ouvido aquela música que estava tocando, era tão bela que nunca esqueceria, entretanto, nem tal lembrança o pôde acalmar.
“Estou fodido, fodido por causa da vadia!”
O ambiente, descrito como um misto de medo e serenidade, era preenchido pelo som da Nona de Beethoven e por vagos raios de sol que entravam pela grande janela de vidro.
- Sei que a mulher que vive comigo deve se aventurar com outros homens. Ela não me deve respeito, diferente de você?
- Dr. ...
- Sabe, nós não vendemos drogas para nossos futuros pacientes. Não vendemos drogas ilícitas! Vendemos remédios que são desenvolvidos por nossos pesquisadores observando e testando nossas pesquisas em pessoas iguais á você, pessoas que ainda não passaram um certo tempo da vida sozinhas para descobrir aquilo que lhes é de maior valor, descobrir quem elas são, entende.
Osmar entendia, entendia perfeitamente e, por isso, tentou explicar com os argumentos mais bem elaborados tudo o que havia feito e lutou o quanto pode enquanto era segurado a arrastado pelos seguranças que lhe colocaram uma camisa de força e o jogaram na ambulância. Dr. Cubo foi junto dos médicos, na frente, ao lado da janela.
Demorou trinta e três minutos para chegarem ao Cubo, um gigantesco local coberto por uma estrutura monstruosa de ferro arredondada com vãos de vidro em espaços que faziam belos desenhos até se unirem no centro. O Cubo era uma “fábrica de pequenos prazeres da vida”, nas palavras de seu magnata criador, onde se desenvolviam as mais variadas pesquisas científicas e culturais, se é que se pode defini-lo. A matéria prima, cobaias para melhor entendimento, eram as pessoas que o Dr. Cubo e seus funcionários julgavam merecedoras de serem trancadas em pequenos espaços, salas com a forma geométrica de um cubo, com paredes brancas. Muitas vinham por livre opção quando eram informadas do que se tratava. Dentro das celas, recebiam o alimento necessário para sua sobrevivência e lá desenvolviam os mais variados métodos de adaptação e de criação para que suportassem o resto de suas vidas até sua morte. Eram meticulosamente observados pelos cientistas que moravam no Cubo desenvolvendo suas pesquisas.
No Cubo são produzidos produtos de consumo, obras de arte, músicas diversas, livros muitos, o conteúdo varia desde teorias pesadas sobre diversas áreas da Ciência e comércio até auto-ajuda e bíblias religiosas, e remédios, vários tipos de remédios, anciolíticos, neuroléticos, bicarbonato de lítio, inibidores da recaptação da seratonina...
O que me assusta não é o local, e, sim, o que o Dr. Cubo sempre me diz:
“Sabe meu jovem, todos nós temos que passar um tempo no Cubo, Todos nós!”




PASSEIO NA PRAIA



Era bem cedo e estava garoando.
Mesmo assim, resolvi ir dar uma andada pela praia vazia.
Deixei meu chinelo de dedo e minha camiseta branca, ainda manchada, em um banco de madeira no terraço, atravessei a única rua que estava entre a casa e a areia, parei um pouco em uma área coberta por uma grama rala, onde cresciam coqueiros de praia e arbustos baixos constituídos por uma folhagem pontiaguda e arredondada, várias eram verdes amareladas. As gotas de água escorriam do vértice para o centro da folha, depois, da folha para o centro do arbusto, alimentando as plantas menores que ali se desenvolviam.
Fiquei observando até onde chegaria.
Podia ver, muitos quilômetros mar adentro, o sol brilhando bem onde o horizonte parece se curvar, como se eu pudesse notar a forma arredondada do planeta. Quando criança, imaginava que ali haveria uma grande cachoeira e tinha muita vontade de ir para o outro lado, o lado onde eu veria a queda d’água.
Pego-me pensando que deva ser uma sensação estranha ficar em auto mar, cercado por um mundo de água ao meu redor. Minha única companhia: o mar e meus pensamentos. Não adiantaria gritar por socorro. Quanto agüentaria? Acho que a pergunta correta é: quem me destruiria primeiro, a natureza do mar ou a natureza do meu pensar?
Mas, se eu for dizer bem a verdade, talvez eu pedisse ajuda só por saber que não haveria ninguém me ouvindo. Gritaria: vejam, olhem! Aqui está um homem desesperado e com medo. Sem um Deus, sem uma crença. Somente, com medo.
Se você não percebe onde pretendo chegar, é só pensar que é fácil pedir ajuda quando se tem um motivo real para se fazer, uma situação na qual nós mesmos e nem ninguém questionaria ou cobraria seus motivos para se estar ali, perdido. Quando se tem um Oceano com todos seus segredos ao seu redor como perigo e não uma vida cheia de regras morais e de comportamento que deveriam nos favorecer ao invés de nos sufocar. Uma vida que todos julgam tudo entender e controlar. Digo que a subida é proporcional ao tombo. Caso você não tenha caído algumas vezes formando degraus em sua escada, tome cuidado, porque quando cair, se cair, será em um abismo e, de lá, é muito difícil voltar.
Pronto, vou até aquela ponta lá à direita onde enxergo algumas árvores, talvez, pinheiros. Gosto de estipular metas para não me sentir solto, sem destino. Desci do parapeito gramado, um metro, talvez um metro e meio, sobre o nível da areia, e comecei a andar meio tímido, logo corria, não por muito tempo, pois notei que ir devagar era melhor. Podia pensar mais devagar observando as casas de praia e toda aquela praia vazia, e antes disso, tinha tempo para gastar. Todos estavam dormindo na casa em que estava hospedado e eu nem tinha a chave para abrir e entrar na sala e na cozinha, de modo que eu deveria andar por pelo menos umas duas horas.
Relaxo e começo a aproveitar meu passeio, sentir o momento. É bom quando vêem esses pensamentos brancos em minha cabeça que apagam tudo que existe e já existiu à minha volta. Somente sinto meus pés afundando de leve na areia da praia, o som dos grãos de areia se separando pelo impacto do atrito entre eles e a garoa batendo em meu rosto. Vejo algumas gaivotas bem altas no céu, tudo isso, acompanhado pelo som das ondas que se chocam com a praia. Perfeito.
Passos por baixo da linha de três varas de pesca, ao lado delas, três pescadores lançavam as linhas distantes com seus molinetes importados. Não tinham aparência alguma dos caiçaras e dos piratas que eu via nos filmes e nos livros. Já andei algumas centenas de metros e esses pescadores e, mais ali em frente, um grupo de surfistas no mar são as únicas companhias vivas nesse estranho dia nublado.
Quando o mar não tinha ondas, os surfistas surfavam no asfalto. Faz-se o skate. Os humanos se adaptam ao ambiente. Eu não sei surfar e muito menos sou skatista, de modo que me contento com minha filosofia de bar, formulada nesse instante, sobre a evolução desse esporte. Quem é mais feliz: o poeta filósofo ou o conquistador barato ali da esquina?
Cheguei à minha meta. Realmente eram pinheiros as árvores que havia visto lá da outra ponta. Daqui de perto, eles parecem exercer uma coreografia ensaiada, balançando de um lado para o outro, regidos pelo vento. Um para frente, dois para trás. Dois para frente, quatro para trás. Não parecem tão sincronizados, agora. Os pinheiros protegiam a área de um camping sobre a areia. Vendo essas barracas todas, chego a me lembrar quando uma árvore como está caiu por sobre a barraca que estávamos, eu e minha mulher, em uma virada de ano. Chovia muito aquele dia, muito mais que hoje. Bons anos de aventuras, nós tínhamos coragem e espírito, tudo que agora nos faltava.
Espero um pouco olhando uma pequena ilha em minha frente.
Ás vezes, eu imagino ter uma ilha onde eu manteria um farol para guiar as embarcações que navegam pelo mar. É belo ver o rastro que um farol deixa girando solitário pelo Oceano. Um princípio simples e extremamente funcional, pois nada é mais veloz que a luz e, assim como, nada pode ser mais abrangente que um giro de trezentos e sessenta graus. Gostaria de ir até lá, sentir-me senhor dessa ilha e de seus mistérios, mas não sou bom no nado.
Ainda não é hora de voltar, entretanto não vou seguir em frente por causa desse esgoto que é lançado ao mar, beirando o muro do camping.
O sol começa a surgir bem, mas bem adiante por onde vim. Cruza por pequenos espaços entre as nuvens que davam uma folga no céu e ilumina raros trechos na areia. Acabara de encontrar a minha meta de volta. Iria, nem que fosse por pouco tempo, pois logo a luz era encoberta de novo pelas nuvens, chegar até um desses trechos que pareciam mágicos em relação ao resto da praia escura e sombria.
Quando vinha me aproximando dos pescadores, tive uma vontade de parar ao lado deles, conversar. Foi uma lembrança dos tempos em que costumava pescar com meu pai e que me comoveu ao vê-los ali. Gostava de ver meu pai arrumando meticulosamente as tralhas todas. Tudo tinha uma explicação técnica: os nós na linha, a maneira de colocar a isca no anzol, o jeito de lançar ao mar. Somos, realmente, uma família de bons pescadores e formamos uma bela dupla, eu e meu pai. Logo se foi o pensamento e segui andando de volta.
Vi o sol brilhando há uns cem metros de onde estava. Meu orgulho é maior que a natureza toda, de modo que não aumentei nem por um instante o meu ritmo de andar para que chegasse até a luz. Se quisesse, que se fosse.
Como esperava, o Sol me esperou e ficou ali por um bom tempo. Tempo que foi suficiente para que eu entrasse no mar e me imaginasse fazendo um pacto com Netuno naquele momento em que boa parte do Oceano, ao menos aquela que eu enxergava, pertenciam a mim. Sentia-me bem enquanto mergulhava embaixo das ondas que vinham em minha direção. Parecia outro lugar, um mundo diferente, e todo aquele gelado envolvendo minha cabeça me acalmava. Quando subia à superfície, ficava observando as formas que as espumas tomavam com o movimento da água. Elas brilhavam enquanto eu ficava, submergindo e emergindo meus braços esticados, e escorriam por entre meus dedos fora da água. Gostaria de ficar por ali mais umas horas.
Quando vinha voltando, já onde a água é bem rasa e faz desenhos na areia enquanto passa pelas pequenas conchas que ali permanecem acompanhando o movimento das marés, recolhi, vendo brilhar, uma delas. Essa pequena e delicada concha branca me impressionou pela tamanha simetria geométrica que mantinha na distância dos pontos em alto relevo que começavam menores e iam aumentando, do centro para borda, em sua superfície espiralada. Guardei-a em meu bolso.
Há vezes em que me acho pensando em pequenas coisas que me tornam um grande homem. Uma dessas minhas vagas memórias me surgiu ontem, vendo da sala, o reflexo da lua cheia no mar. Junto da visão, veio-me à lembrança de uma passagem que li, em um certo poema cujo autor não estou muito certo de quem seja. Se eu estivesse escrevendo, isso seria uma falha. Poderia parecer um erro meu não citá-lo da maneira correta, mas eu só estou pensando, não escrevendo. Contudo, creio que eu o citaria assim mesmo, sem muita certeza, sem aspas, dizendo com sinceridade que não sei ao certo se foi mesmo Fernando Pessoa quem o escreveu. O que me sobram são essas pequenas marcas que eu nem sei se conferem com o real, mas que valem muito para mim. Assim diz: Deus deu ao mar todos os mistérios e segredos do abismo e da escuridão, mas nele refletiu o céu.
Daqui já posso ver a sacada da bonita casa que alugamos para passar o feriado. Toda a frente era de madeira e o beiral das janelas e portas eram pintados de verde, tinta essa, já gasta pela maresia e com um tom amarelado. Tinha um grande vidro na frente de onde podíamos ver a praia da sala de estar. No pequeno jardim que dividia espaço com a garagem tinha um coqueiro, ainda jovem, que serviu de fornecedor de armamentos, os coquinhos que brotavam nele, para meus filhos que brincaram de guerra por um longo tempo da tarde de ontem. Resolvemos passar, nessa bonita praia, um pequeno tempo para esquecer da vida cotidiana. Esquecer da empresa que há alguns anos não vinha muito bem nos lucros, da academia, das belas festas que freqüentávamos, tudo havia ficado para trás, ficado longe. Longe demais, para mim.
Havíamos conquistado um belo patrimônio que mantinha um alto nível de vida. Tudo que víamos era luxo, nossos amigos viviam no luxo, nós vivíamos no luxo e eu não poderia deixar que isso tudo se acabasse de uma hora para outra. Minha família não aceitaria e não conseguiria viver fora desse mundo que havia se tornado nosso mundo, o mundo dos meus filhos, um mundo com o qual eu e minha mulher acabamos nos acostumando e, como é fácil se acostumar com tantos prazeres ao nosso alcance.
Não entendia os pensamentos que andavam me perturbando, como os que eu tive hoje de manhã, enquanto todos dormiam. Quando estava distante, queria ficar junto, quando estava junto, distante. Tal discórdia com o mundo vinha me sufocando há algum tempo e todos eles com o seu egoísmo não podiam me ajudar, aliás, não admitiria ajuda. Eu não aceitaria ser um problema na vida de ninguém, além de ser o da minha. Foram exatamente as palavras que disse quando, eu e minha mulher, bebíamos champanhe de noite. Ninguém entendeu muito bem o que eu queria dizer e muito menos, eu mesmo.
Tirei a pequena concha branca em forma de espiral, geometricamente perfeita, com um pouco de dificuldade, de meu bolso. Seus pontos salientes pareciam desenhados sobre ela por algum artista ou alquimista. Uma verdadeira obra de arte emoldurada pelo resto de minha mão. É impressionante o que podemos notar em um pequeno objeto, uma pequena dádiva da natureza, e o frio que nos dá por dentro ao saber que, mesmo assim, poucas pessoas vão esperar um pequeno segundo que seja de suas vidas para observá-la.
Penso, agora, na cena que via quando voltei para casa de praia depois de meu passeio. Havia muito sangue escorrendo pelo piso de azulejo branco em frente ao quarto onde estavam minha mulher e meus dois filhos, um menino e uma menina, mortos. Não quis entrar para vê-los. Esperei sentado no banco de madeira onde deixei meu chinelo e minha camiseta, ainda suja de sangue, olhando para a imensidão do oceano, até que alguém chegasse, mostrasse-me um rumo.
Existe um certo branco em minha cabeça no momento. Por quê teria feito? Não sei, mas ao ver a pequena concha se quebrando quando a lancei na praia enquanto caminhava para meu último mergulho, lembrei-me de algo que li ou ouvi e segurei, com muito esforço, a lágrima que se formava em meus olhos. Diz: “Não podemos manipular a natureza se quisermos observar como ela realmente atua”.



O COADOR DOS SONHOS



Ah! Eu não quero. Não!, por quê fui acordar?
Acordei, mesmo assim.
Aprendi, na prática, que não se encobrem problemas dormindo. Podemos nos livrar deles por um tempo, curto no meu caso e longo para quem toma uma droga, mas os pensamentos dispersos voltam quando acordo. Tudo isso tem um motivo, tem um motivo, foda-se! não quero mais crendices!, já acreditei em tudo que podia e minha fé só me adiou um pouco a situação de desespero em que me encontro. Estou debruçado na janela, de hoje não passa, isso vai terminar. Medo cretino, medo cruel, medo... que me protege.
E por quê? Droga! não agüento mais isso. Para onde estou indo?, não preciso Ah! não quero sair daqui!. Sento-me na escrivaninha, mão na testa, não quero mais escrever, droga! Se para escrever eu tiver que corroer inteiro por dentro então foda-se isso tudo frowsh fiquem no chão, papéis inúteis. Quando nasci, não havia anjo algum e meu mundo é que é torto. Ao meu lado toda essa decadência e falsidade e eu me sentindo inferior a todos eles. Don’t let me down, don’t let me down! Não agüento me sentir baixo.
Abaixo minha cabeça até a mesa, olhos fechados, colo um dos ouvidos na madeira gelada e tento não pensar por um tempo. Suspiro, abro meus olhos e vejo, de lado, um livro que peguei na casa de meu avô e que havia me aliviado a dor uma semana antes. Só lembrei disso, o alívio que me deu enquanto o estava lendo, não lembrei da história. Nem poderia! Estava doente!
Justo eu, sabedor de tudo que há no mundo; forte na defesa de minha causa solitária; que tantas pistas achava na vida me fazendo acreditar que estava no caminho certo, justo eu, que imaginava não precisar de ninguém ao meu lado; que acreditava no amor mais que tudo; que fugia e fingia para que me deixassem em paz, justo eu, que julgava enxergar mais do que todos; que guardava comigo todas as dores e alegrias, justo eu, que nascia e morria em pequenos fatos da vida; que lembrava do meu primeiro tombo quando criança; que me divertia olhando as nuvens e, agora, os carros, justo eu, que resolvi ler sem que ninguém mandasse; que me encontrava e vivia naquelas páginas de livros, justo eu que sonhava poder mudar o mundo, agora, não tinha paz. Minha dor engolia pedaço a pedaço meu orgulho infantil. Não podia mais fugir, não podia me enganar e, assim, viver me doía, me doía muito. Nada mais justo!?
Como isso tudo me parece injusto, daqui onde vejo.
Pensava tudo isso enquanto caminhava para casa do meu avô, duas quadras abaixo da minha, nem sei porquê, com o livro que emprestará na mão e ainda vestindo aquela calça, um trapo de pijama.
Entrei na casa do meu avô abrindo a pequena grade de ferro enferrujado nas partes em que a tinta azul claro já havia descascado, andei por um caminho pavimentado de cimento inteiro rachado, algumas partes já na terra, cercado por umas roseiras espinhentas onde joguei meu primo quando criança. Se não estivesse tão mal, estaria rindo das minhas molecagens.
Não quero entrar, agora. Sentei-me numa cadeira na pequena sacada, de frente para o jardim. Uma formiga preta subiu em meu braço me fazendo, por um instante, lembrar de como era divertido quando eu e meu irmão, com as seringas que vovó usava para curar a doença que acabou a matando, já há alguns anos, inundávamos a casa delas, das formigas, com água e sabão.
Sem que notasse, uma lágrima começou a escorrer de meus olhos, minha boca tremia, estava chorando baixo, quieto em meu canto.
Vi meu avô entrando pelo portão com sua sacola de fios de saco de batata trançados e coloridos. Enxuguei meus olhos para que ele não soubesse que estava chorando. Tentei sorrir.
- Olá
- Acordou cedo, menino! Se chegasse meia hora antes, teria ido a feira comigo.
- Só vim devolver o seu livro. É muito bom.
Levantei meu rosto. Meu avô notou que eu não estava bem. Vi em sua expressão serena. Ele me chamou para entrar e acompanhar no café da manhã.
Permaneci calado na mesinha enquanto meu avô contava alguma coisa sobre a feira; banca de frutas; falta de abacate. Ia respondendo com risos curtos como se estivesse entendendo. Só não queria falar para que ele não notasse o desânimo em minha voz. Meu avô me serviu um prato de pãezinhos, manteiga, geléia de uva e suco. Comi pouco, bebi um suco, estava tremendo.
- Sabe, meu filho. Há dias em que me pego pensando naqueles passeios que fazíamos pela cidade. Sua avó ficava louca de brava. Mas eu gostava de andar com vocês...
Comecei a pensar na minha infância, de como eram bons esses passeios com vovô, e quando ele voltava para casa com doces e figurinhas novas para nossos álbuns, nos levava, no boteco, tomava seu copo de pinga, a gente ganhava um salgado pela cumplicidade. Lembrava das travessuras que fazia com a bicicleta e o rolimã...
- Você está me ouvindo, meu neto? Não parece bem.
Comecei a chorar.
- Desculpe, não tem nada haver com o senhor. Só uns problemas meus...
- Calma. Está tudo bem se quiser chorar.
Era um choro contido que esperava dentro de mim o momento de explodir para fora. Chorava muito sem que pudesse controlar
- Tenho notado que você anda quieto em seus cantos, sozinho com seus pensamentos. Eu lhe disse uma vez, quando seus pais brigaram com você por causa de uma molecagem com seus amigos, que você não devia confiar muito nas pessoas. Só que nós não podemos nos perder dentro de nós mesmos, meu neto.
As palavras de meu avô iam aliviando minha dor.
- Precisamos nos abrir com alguém e estar preparado para ver fora de nós o caminho certo. Os sinais que a vida nos proporciona.
- Eu venho tentando meu avô, tentando acreditar nas coisas que eu enxergo, talvez, sinais como o senhor diz, mas não consigo mais... não consigo ser forte sozinho.
- Menino, ficar só nos faz enxergar coisas importantes para nossa vida, nos faz ter um autoconhecimento que só vai nos enriquecer, entende. Eu sei que é difícil você ver isso agora mas...
Eu abri o livro que estava na nossa frente e tirei dele um papel no qual eu tinha escrito um texto.
- Talvez o senhor entenda. Escrevi após ler o livro que você me emprestou, fala um pouco sobre o que eu estou tentando dizer.

A Obra

E o que é a arte, se não, uma representação da incompatibilidade subjetiva com o real.
O sujeito que consegue representar essa incompatibilidade em uma obra, é um artista?

Para ser um artista, é preciso coragem.
Para que entendam sua representação, talento.

Uma obra de arte se faz na solidão.
A solidão da distância do olhar, a solidão da incompatibilidade.
O olhar distante,
O olhar sozinho do artista...

Eu tenho sido minha obra,
Minha representação de tudo que não me agrada.
Agora, tenho usado o papel e o lápis.

Eu represento a incompatibilidade no meu modo de ser.
A verdade do que eu sou, me apareceu na dor.
A arte, um meio de fazer na solidão, vida.


Senti a emoção nos olhos de meu avô enquanto ele lia o que eu tinha escrito. Ele me pediu para esperar um pouco e foi buscar algo. Sentia-me muito feliz e um alívio me cresceu por dentro.
Meu avô voltou para cozinha com um pano amarelado do tempo. embrulhado em um saco transparente, em suas mãos.
- Escute bem o que eu vou lhe contar, meu neto. Esse pano que eu trago aqui me foi dado por meu avô que foi um grande pensador e escritor em seu tempo. Ele me entregou essa fronha antiga um ano antes de ser internado e dado como louco pelos médicos. Ele me contou ter sido, esse pano, lhe dado de presente por um tio-avô que o criou quando criança. Esse tio-avô havia escrito várias teorias que foram queimadas na fogueira pela igreja. Meu avô defendeu até a morte suas crenças e escritos, pois dizia ele guardar um talismã sagrado que o fazia pensar e entender as coisas melhores e mais claras que qualquer outro ser humano. Quando ele percebeu não ter mais força e raciocínio necessários para manter suas proposições, chegou até mim e me entregou seu talismã. Ele me disse que via em meus olhos um jovem decente e honesto e sabia que mesmo se eu não tivesse nenhuma aptidão pela arte ou pela escrita, iria o guardar com zelo até encontrar alguém que o merecesse. Esse talismã é esse pano, essa fronha de travesseiro de alguns séculos de idade, que está em sua frente, meu neto. Guarde-a com você e nunca mais se sinta só com seus pensamentos. Lembre-se que você deve transmiti-lo a alguém, o talismã e seu conhecimento, com responsabilidade e virtude pois ao contrário, de nada o valerá. Nossos antepassados o chamavam de O Coador dos Sonhos.
Segurei o pano antigo envolto em uma embalagem de plástico por algum tempo. Sentia-me seguro comigo mesmo. Agora eu tinha uma responsabilidade a cuidar, mesmo que ninguém soubesse, e, não entenderiam se soubessem. Aceitaria as dores, minhas alegrias, meus sonhos. Sentimentos que eu não saberia descrever e que, no entanto, não me sufocariam mais, pois teria uma companhia, teria uma razão de ser. Poucas pessoas entendem o que eu digo e espero que conheça uma delas para lhe entregar o talismã quando este já não me for necessário.
Olhei para meu avô e um riso começou a surgir em meu rosto. Não era um riso qualquer, era algo que emanava de dentro de mim, talvez, uma resposta de minha alma para que soubéssemos o quanto era importante o que tínhamos feito.
Abracei meu avô, como há tempo não fazia.
Ele me entregou mais um livro quando eu estava saindo.
Passei pelo jardim e os velhos pensamentos fluíam em minha cabeça sem que fizesse esforço algum. Chegava a me enxergar brincando com meu irmão e meus primos, enquanto minha avó preparava algum doce na cozinha e meu avô nos observava da sacada, provavelmente, pensando na aventura que faríamos no dia seguinte..
Entrei em meu quarto, coloquei sobre a mesa o livro e o talismã e dormi como há muito não dormia.
Não sei se acordado ou já dormindo, lembro-me de ter pensado e me dito: assim eu sou, sempre fui e vou ser um sonhador.
Digo-lhes que a fantasia não me é má. Ela me engrandece a viver um mundo que nem eu mesmo sei que possa existir.
Sentado em minha velha cadeira de balanço, penso em meu neto. Olho para meu canário da terra em sua gaiola. Já pensei em soltá-lo, várias vezes, mas sei que ele já perdeu sua total capacidade de viver em liberdade. A liberdade que falta a tantas pessoas como esse menino que acabou de sair pelo meu portão e, nesse momento, deve estar sentindo um alívio indescritível nele mesmo.
A liberdade que somente os sábios e os velhos como eu podem notar ou sentir falta. A liberdade com eles mesmos, a liberdade daquilo que os cerca.
Tudo que pessoas como esse jovem precisam são meios, formas para poder mostrar o quanto eles podem ser grandes em seus sonhos. Pessoas assim precisam suportar toda a doença que há no mundo para que encontrem e nos mostrem suas pequenas verdades. Eles absorvem para si todo o mal que existe neles e em volta deles e, com muita força, refletem os gigantescos erros que cometemos com nós mesmos.
Para que resistam a toda essa responsabilidade que guardam dentro de sua gigantesca e pequena, antagônica alma, precisam encontrar e acreditar em um rumo.
Sou forte em dizer: Procurem por ele. Procurem por seu “Coador dos Sonhos”.
Cada um de nós tem o seu sonho em algum pequeno canto da alma. Não o encubra e não deixe que o façam. Ele é seu. Você sabe que está aí dentro. Mesmo que lhe cause dor, é sua única verdade, é o seu eu absoluto.
Naquele dia, quem estava por perto diz que o sol brilhou mais claro; os pássaros voavam mais livres; as árvores eram mais verdes; o vento corria-lhes pelo corpo como a água corre no mar; as nuvens pareciam desenhos, verdadeiras obras de arte no céu.



DIA DE ANJO



Bonita aquela moça que esperava dentro do carro no estacionamento da padaria.
Tenho andado mais calmo, passaram àqueles dias em que eu estaria me perguntando, viajando as possibilidades que temos em nossos encontros na vida, como se cada pessoa fosse um conjunto fechado e eu um simples número excluído dele., como um conjunto vazio ou com um único elemento, o que acaba dando na mesma.
Era só uma menina. se fosse outra ocasião, falaria com ela.
acredito ainda que cada pessoa seja sua equação, mas tenho notado que entrar nela não é tão complicado. É só uma questão de resolver algumas contas, transmutar alguns números que não se igualem, analisar os resultados e, algumas vezes, admitir que não existe solução possível naquele sistema que pretendemos, pois a Matemática é infinita, contudo, mantém suas regras determinadas.
Quem sabe tudo se explique em números, melhor, possa ser representado por eles. A sombra que faz esse semáforo, o latido daquele cachorro furioso atrás do portão, o movimento desse carro.
Matemática, Filosofia e Democracia, três ciências que levaram à sabedoria, ou, derrocada, criadas pelos gregos. Não sou nenhum gênio, de modo que consigo viver sem me incomodar com tantos assuntos que não são pertinentes ao momento. só estou voltando da padaria em um dia normal, numa cidade normal, carregando um saco com pães quentes normais que vou comer.
Sigo ouvindo mamãe falar enquanto como uma beira de pão que estava caindo do pacote com outros mais que eu carregava. “Triste, né? Mas o rabo dela já estava todo cheio de feridas e ai a Rita decidiu que era o melhor a ser feito”.
Interessante como as pessoas têm uma queda por falar por falar de tragédias. Mamãe não era diferente e, como pessoa, estava me contando que a cadela da Rita, uma amiga dela, havia sido sacrificada.
Dia bonito, uma brisa, sol ameno. Seu Manoel abre o portão da entrada de nosso prédio nos vendo se aproximar. velhinho bom. “Bom dia”, digo a ele.
Costumo conversar com seu Manoel algumas vezes. As pessoas de idade avançada têm uma dependência em contar suas histórias, talvez, para que elas não se percam quando eles se forem. Com uma idéia mais fixa na morte, acabam notando que o que têm de maior valor são esses momentos que me contam com louvor. uns são chatos, outros sábios.
“Ela está tão abatida que falou que vai dar a duquesa só para não estar junto quando ela morrer”.
No hall de entrada de nosso prédio tem umas mesinhas e cadeiras. Nada interessante, se a Aline não estivesse sentada em uma delas, sozinha. passo ao lado dela, encarando.
“É uma dó com o bichinho morrer assim, não é”? É sim, mãe.
Esperamos um pouco em frente á porta do elevador que estava em outro andar, tempo suficiente para manter os olhos na Aline, disfarçando que a olhava. o que é direto não me atrai e nem a ela.
Subo e já não escuto mais o que mamãe diz. Pouco importa. Rita que amarasse a Duquesa num saco e a jogasse pela janela, quem sabe assim elas se viam no céu canino. estava pensando no olhar de canto que Aline me deu quando passei ao seu lado. olhar breve, acompanhado de um riso esperto que só vejo nela. logo desvia sua vista de mim. provoca e adoro. ela estava vestindo uma calça jeans azul clara, camiseta branca meio larga, e sentada sobre sua perna, com seu tênis no chão, pude reparar na meia com algum desenho que usava. Se não fossem a suavidade e a delicadeza em seus atos, de que valeriam as mulheres? Sou atento a pequenos detalhes, como quando sua mão escapa de leve até meu braço quanto conversamos. ela recolhe e nem finge que foi de propósito, eu relevo e finjo que nem notei sua mão sobre mim. Pequenos detalhes, sintonias que fazem da paquera uma verdadeira arte para quem sabe. Aline sabia e eu tinha a sorte de conhecê-la. Eu lá queria saber da porra da cadela que morreu. entro, pego o resto do pão francês e desço.
O elevador ainda está no meu andar. Melhor. Penso nela, loira, cabelo liso, pequena e meiga, olhos de anjo. Anjo, se conhecessem-na como eu conheço, ririam do meu sarcasmo. Ou nem tanto sarcasmo, os anjos também devem meter, se não, problema é deles. o anjinho que está lá em baixo tem os seios mais lindos que já vi. Bicos clarinhos, com um tom rosa. Estou de pau duro. Melhor me acalmar. Como o pãozinho. o elevador pára no terceiro andar enquanto entra um casal que vai se ajeitando no canto. Engraçado como as pessoas ficam perdidas nos elevadores. Quando são duas, como esse casal, eles até conversam, ela mostra o bonito anel para ele, quem sabe um presente para perdoar uma possível traição, sei lá. Se fossemos só eu e mais uma pessoa que tivesse entrado, provavelmente ela estaria olhando para os lados, para o relógio, se sentindo acuada, ambos esperando que alguém diga alguma coisa. Chegamos. o elevador dá um tranco e pára fora do nível do térreo formando um pequeno degrau.
Aline ainda continua sentada, lendo uma revista e, agora, com seus dois pés levantados, apoiados em outra cadeira na frente. Chego meio envergonhado, não sou de muitas palavras, será que dou um beijo em seu rosto? Dei. Esqueci de dizer. A boca dela é maravilhosa, carnuda. Perco a noção só de senti-la em meu rosto, mérito dela, pois as outras não sabem cumprimentar assim. fica sossegada, eu sento nessa outra aqui do lado. bonita meia! ela mexe os dedinhos do pé e apóia a perna sobre a mesa. Legal, né? O desenho é de um menininho de um desenho novo que está passando na televisão, eu vi e achei bonitinho”. Realmente era bonitinho, e naquele corpo ficava maravilhoso. ela abaixa a perna e coloca a revista sobre a mesa. uma revista sobre lugar para viajar, edição especial: Fernando de Noronha. como vão as aulas? Chatas, ela diz. “Fiz uma prova muito difícil de Física, devo ter ido muito mal”. eu até que estou indo bem nas minhas, levando na boa, não vou esquentar com besteiras, e era verdade o que eu dizia. “Nem eu, só faço aquilo que gosto, que me deixa bem. Queria era ir para uma praia como essa aí”. Até mesmo Eisntein iria querer ir para uma praia como essa, respondo. “E com uma prancha de surfe no maleiro”. adoro seu riso, menina. Mais algumas palavras para aquecer e fomos dar uma volta no condomínio.
Seguimos andando pelo condomínio enquanto falávamos de pratos chiques de restaurante e de como eles podiam cobrar tão caro por uma porção de coisas esquisitas que só davam mais fome. seguindo algumas quadras da nossa, mais ou menos, em frente ao quiosque onde funcionava uma lanchonete, havia um outro prédio em construção. Costumávamos ficar ali nas garagens do térreo e um dia, na sei bem quem teve a idéia, acho que seria justo dizer que foram os dois, nós somos bons em escolhas novas, resolvemos subir e ver os apartamentos vazios. Ontem mesmo estava dizendo para Alina, enquanto a gente fumava um baseado depois de ter trepado no banheiro, ainda sem o vaso e a pia, do trinta e quatro, que era engraçado o fato de vir alguém morar ali um dia. Trazer sua mulher e os filhos para viver em um cantinho tranqüilo, tão desejado e enfim comprado a duras penas pensando ser só deles. Engraçado, não é? Hoje usamos só a cozinha do sessenta e dois. Eu e meu anjinho estávamos sossegados. Mas, foi perfeito. perguntei o que ela ia fazer amanhã. ela me disse que ia sair com o namorado. Há de se entender, os anjos também amam.
Tomamos uma vitamina na lanchonete conversando sobre uns otários do condomínio que estavam zoando o carro de um eletricista que fazia um serviço em um poste de luz próximo de nós. Concordamos que era perder tempo imaginar o que seriam esses moleques no futuro, boa parte do mundo é injusta e aquele não era o momento para se corrigir isso. Mas não seria ruim se o eletricista fosse um maníaco doentio, descesse da escada grande de madeira e passasse por cima dos estúpidos com seu Fiat centro e quarenta e sete. Não mesmo, concordamos de novo. Fui com Aline até seu andar e nos despedimos.
Acredito que formaríamos um belo casal se não fosse a distância, a causalidade de nossos encontros. Gosto dessa menina e, por isso, mantenho-me onde estou.
Entrei no meu apartamento. Minha mãe assistindo novela na sala, meu pai no escritório, meu irmão comendo alguma coisa na cozinha. Fui para meu quarto. Tenho uma prova e vou estudar. Acho matemática uma matéria bonita; exata, sem falar dos números complexos.
Um pouco abafado aqui dentro. abro a janela e vejo o prédio em construção. Faço as contas. Sessenta e quatro apartamentos, para simplificar, penso uns cinco cômodos por apartamento, isso vão dar trezentos e vinte fodas, se não houver repetição. É um bom número. Não me gabo por ele.
O que vale não é o número e só, e somente só, o Anjo que nos acolhe.









CONTOS FANTÁSTICOS



DO DILEMA ENTRE O SOL E A LUA



Nossos Astros Maiores estavam em uma disputa existencial constante.
O Sol não se contentava em só ter o dia para brilhar.
Para a Lua, o dilema era maior.
A Lua não entendia porque tinha fases em que brilhava e outras em que permanecia sem luz alguma.
Tamanha disputa interior acabou se tornando uma Guerra entre nossos belos Astros. Cada um deles se julgava superior ao outro. Trocavam ofensas, ambos defendendo sua forma individual de estarem aparecendo para nós, humanos.
Realmente, a briga se tornaria prejudicial para todo o Universo. O Tempo estava nublado. Algo tinha que ser feito.
Foi então que nossos Analistas do Tempo, o Amanhecer e o Entardecer, resolveram, de forma sábia, convencer nossos Astros de que eles podiam chegar ao equilíbrio unindo suas forças.
No início, foi bem complicado manter a calma dos Astros. Altas nuvens negras cruzavam o caminho entre eles.
Parecia que de modo algum a Estrela e o Satélite aceitariam suas impossibilidades individuais. Aceitariam que não eram perfeitos sozinhos, e que isso não era um defeito, pois isso possibilitava o existencialismo maior que era a capacidade dos dois serem perfeitos juntos, um para o outro, e dessa forma, para todos.
A missão da Manhã e da Tarde não era fácil, mas eles não desistiram porque sabiam que o entendimento entre os Astros era algo muito importante para todos nós, até mesmo para aqueles que nem notavam tamanha guerra Espacial sobre nossas cabeças.
Foi então que, sabiamente, nossos Analistas do Tempo convenceram o Sol de que ele brilhava a noite também, e que isso só era possível por existir a Lua. Foi mais complicado convencer a Lua de que suas fases eram importantes para mostrá-la e, mostrar a nós, também, que não somos constantes, temos nossos momentos bons e ruins e não devemos enxergar isso como um defeito.
Os Analistas do Tempo tornaram claro, aos Astros, que as noites nas quais não temos Lua servem para lembrar a eles suas imperfeições, não como uma crítica, mas para que saibam que só são perfeitos se estiverem juntos, se trocarem seus conhecimentos, mesmo que para isso tenham que mostrar suas falhas que são o motivo de tanto medo e distanciamento.
Assim, devemos agradecer aos Analistas do Tempo por termos o Sol de nossas praias e a Lua dos apaixonados. Devemos também agradecer o quanto é importante termos os dias escuros, porque eles nos lembram da única forma de chegarmos à perfeição.
Por mais que os Tempos estejam nublados, os Astros estão aqui para nos mostrar que assim funciona a vida. É só olharmos para cima, e vermos que não somos o centro desse Universo Gigantesco, e, sim, uma parte dele. Uma parte vulnerável, imperfeita, que precisa de várias partes para se tornar um todo. Isso é perfeito.



SURFING INSIDE MY MIND



Resolvi dar uma caminhada dentro da minha mente.
Não porque eu queria, mas para entender, por que ela não saía de lá?
É uma sensação estranha andar no seu próprio cérebro, mas é interessante tomar uns choques nas suas próprias sinápses.
Eu não estava errado, ela realmente estava por todo o lugar.
Por onde eu olhasse, veria seu rosto nas paredes de minha massa cinzenta.
Perguntei a um dos meus neurônios como eu poderia resolver aquele impasse. Ele me respondeu, um tanto elétrico, que eu deveria dar com o encéfalo, pois ele tratava desses assuntos de memória.
Estava chateado por descobrir que até no meu cérebro existe burocracia.
Meu encéfalo me disse que já havia tentado resolver meu problema, mas que não conseguira e, então, me aconselhou a ir ao meu ouvido e me dizer que eu devia esquecê-la.
Eu fui e me disse: esqueça-a, esqueça ela.
Mas, então, eu joguei sujo comigo mesmo e me disse: se apoie um pouco no lóbulo da nossa orelha e olhe para frente.
Ela estava lá, na minha frente e, quando a vi, quase cai do meu corpo.
Corri, o mais rápido que pude, até a entrada de meu ouvido e me disse: não escute o que dizem e nem seu próprio consciente. Só vá até ela e a beije. Você vai entender, nós vamos entender.
Corri para dentro do meu cérebro, agarrei um dos meus neurônios pela cauda, e saltei sobre ele, me preparando para surfar.
Só pude ver ao fundo aquela enorme onda de adrenalina que se aproximava e, então, comecei a surfar no oceano que se formava em minha mente enquanto eu a beijava e continuei...
Surfando......surfando.....surfando...............



P.S:
Se me perguntar como eu penso tudo isso, não vou responder!
Eu não tenho a resposta, e, duvido que você tenha!
Talvez eu possa entrar em meu cérebro e buscar aquilo que nem eu sei que está lá....

It’s my brain, not yours
So, be on sussa...

I’m going to surf....so, let me in peace
I’ll take a walk inside my brain, and you can’t come together
Isn’t my fault, but you may not to come in
I`m sorry.





DE COMO AS MEIAS DA SABEDORIA CHOVERAM DO CÉU



Houve certo dia no mundo em que todos os sábios resolveram conversar com suas meias.
O evento ocorreu do modo que aqui vos narro:
Os sábios recusaram-se a compartilhar suas fabulosas; sonhadoras; idealísticas idéias com uma boa parte de pessoas egoístas que nada entendiam além de sua medíocre visão de mundo.
Aborrecidos, resolveram que o melhor a fazer era compartilhar de seus conhecimentos com suas meias.
Conta-se que tudo começou quando um dos maiores entre as maiores sapiências observou uma criança falar livremente com uma de suas meias.

Parece estranho?
Pois, mais ainda é o fato de, dias depois, uma ventania direcionada por uma força maior ter feito com que todas essas meias subissem ao céu e lá permanecessem.

Agora vos digo, pessoas necessitadas do mais puro chulé da sabedoria:
Corram!, corram, antes mesmo de terminarem com a leitura desse humilde relato.
Corram, pois todas as meias da sabedoria estão chovendo do céu... Bem no seu quintal...

Mas há de se saber,
As meias têm suas regras fechadas.
Não cheguem apressados; afobados pela ânsia do saber.
Caso assim fizerem, as meias da sabedoria voaram para os céus novamente.
Vocês devem seguir pequenas regras antes de se aproximarem.
Uma delas, talvez a mais importante, deve ser seguida sem restrições,
Ao pé da letra (com ou sem meia),
Da letra que aqui vos digo, vai-se a regra:

“Antes de falar com as meias da sabedoria, favor passar o talco anti-higiênico que previne o ódio, a falta de fantasia e a falta de amor da humanidade. Caso contrário, volte com seu pé sujo e siga outro caminho”.



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Só por ver aquele homem de estatura mediana ali à frente, deitado sobre uma pedra entre tantas outras que constituem nesse rochedo que nesse instante atravessa uma disputa de elementos com o nervoso mar de uma pequena ilha em alguma parte oeste do Pacífico, local que se é de costume verem-se os cocos maduros descerem por sua própria força ou vontade pelos troncos dos coqueiros até as mãos dos pescadores que saem de manhã bem cedo para o mar e, nesse mesmo dia, quando de lá voltarem, verão eles os belos urubus que vivem nessa pequena vila sitiada no infinito quieto de algum ponto iluminado do mundo, verão eles essas aves negras incriminadas pelo signo da sujeira sentarem-se no lado oeste dessa praia, logo adiante daqui, para discutir sobre aquilo que estiver em suas mentes urubanesas, e, é digno de respeito o belo esforço desses seres, pois vai-se tentar entender a metafísica existente por trás de qualquer lixo humano. Sabe-se agora que foi nessa ilha de estranhos fenômenos que decidiu aquele homem do qual falava há pouco deitar-se sobre uma pedra côncava, ao lado do mar revolto pelo vento, olhando para um pequeno barco de pesca que segue ao horizonte, com sua cabeça apoiada sobre o braço esquerdo dobrado abaixo dela, com as duas pernas encolhidas em forma da letra “v” com o vértice voltado para o céu dando, desse modo, apoio ao sonhador que ali divaga e como disse, só por vê-lo já podia imaginar muito do que aquele homem pensava e, então, fui me aproximando e pude ouvir perfeitamente quando colei minha cabeça junto à rocha que ele pensava. Pensava ele:


O SONHADOR E O BARCO

Imagine a imaginação como a um barco.
Acredite em tudo no nada e sente-se para ver seu barco que naufraga
Sem nem mesmo perceber o marinheiro que o leme draga
Procurando um sentido no mar revolto
Para não seguir sempre solto

Sou só um pequeno barco que tendo um oceano na cabeça
Talvez mereça:
Um leme.

Mas,
Não consigo (você ir embora do meu pensar)
Sigo e sei que você só existe no oceano do meu ar
Pois, só, nele é que se crê as letras do meu divagar

E devagar
Minha visão segue sozinha como aquele barco

Visão já esta embaçada

Já nem sei mais se é o Oceano
ou se amo ...


Comecei a não perceber mais o que aquele solitário homem pensava quando minha companheira chegou me perguntando.
- Olá querido. O que faz você aí?
- Eu estava só observando aquele homem deitado ali na frente.
- Ah! Já vem você de novo começar a dizer que sabe ouvir o que eles pensam. Vamos, vamos logo embora.
- Mas eu entendo querida, entendo aquilo que eles pensam. Escuto e sei sobre os medos desses homens. Você me entende?
- Não! não entendo nada do que me diz. Vamos para casa.
Percebendo um rancor sereno em seu marido, ela carinhosamente segue abraçada com ele e pergunta.
- E então, meu bem, sobre o que ele pensava?
- Ele precisa de um leme, meu amor.
- Um leme? Então é pescador?
- De certo modo sim, mas ele navega em um mar de sonhos, meu bem, e o leme dele é mais difícil de se encontrar...

E assim seguiram aquelas duas baratinhas do mar andando sobre as pedras até chegarem em suas tocas, próxima ao homem que ainda o barquinho observava seguir ao mar, enquanto um grande coco já descia a mão de um nobre pescador que seu barco recolhia na areia da praia onde já se podia ouvir a discussão de dois urubus sobre a organicidade das proteínas.



DECÁPODES, BRAQUIÚROS, DE PERNAS TERMINADAS EM UNHAS PONTUDAS



Estou tentando entender o quanto isso tudo é irônico. Minha consciência é irônica. Sou tão consciente de quem sou que nem mesmo essa droga de bebida me faz entrar nessa droga toda que vocês constroem para se esquecer do que são e, Como é fácil se esquecer dos seus valores no meio de todo esse circo, sou obrigado a reconhecer, estão fazendo um belo serviço, construindo excelentes cenários que garantem a mediocridade da personagem que nos tornamos. Do que falo? Falo desse movimento todo que observo “tum, tum, tum, pan, pan, pan”, e, nem mesmo seu som pode diluir meu pensamento e a droga diluída em meu sangue já não me faz pensar diferente, Deve ser porque nunca fui muito, mesmo, fan desse espetáculo a ponto de me identificar com ele. Podem-se conseguir festas melhores dentro do seu quarto, aliás, já pretendo voltar ao meu, devo lembrar-me que só saí porque meu pensamento estava me massacrando por lá, então, é bom agüentar mais um pouco por aqui.
Sabe o que gosto na maneira como penso? Eu não odeio essa festa, não tenho raiva desse som e das pessoas que se divertem ao meu lado, drogadas ou não, eu só acho isso tudo um tanto falso. Acho essa felicidade um tanto falsa e sei o quanto isso pode ser perigoso, sei que muitos de vocês irão ficar mal quando toda essa alucinação passar e penso em quantas chances se dissolvem e se perdem por acreditar que nada é verdade no que vejo. A verdade é que estou no lugar errado e fico tentando compreender aos outros enquanto não consigo entender a mim mesmo. Devo ser algum tipo de esquizofrênico ou louco, talvez, classificar-me como um doente só seja um truque do público para ironizar meus valores que machucam os deles. Essa dita doença, já nos deu grandes autores. Agradeço por eles terem driblado a medicina e a exatidão da ciência, pois a verdade representada em suas obras são meus verdadeiros tutores. Sou somente a verdade e descrevo. Se eu atrapalho todo esse espetáculo, sinto muito. Gostaria mesmo que todos fossem felizes e acreditaria que todos são, mas não é o que vejo. Não vejo alegria nos olhos dessa moça que acabou de beijar aquele rapaz e que se sentou ao meu lado. O que vejo é alguém com dúvida e medo, alguém sofrendo e que não tem mais coragem e a inocência para chorar. Não gosto de pensar tudo isso, e, agora sei, contradizendo um pouco o que disse, que faço isso porque me incomoda realmente estar aqui. Incomoda-me o movimento, incomoda-me o lugar, incomoda-me a possibilidade de encontrar alguém interessante para conversar... Nossa! Como ele fala bem dos seus problemas. Certo, é assim que pode ser chamado alguém que não gosta muito de conversar porque sabe que será difícil expressar o que sente dizendo, alguém que não se sente muito bem no meio de muitas pessoas e vendo ou ouvindo coisas que não lhe agradam e que não se acha muito forte para contestar tudo isso no momento em que a vida está acontecendo, alguém que se sente mal e se corrói por dentro por não contestá-los. Um problema! Definição rápida para complexidade que se é um ser humano. Mas, nossa vida não pode esperar a compreensão de baboseiras sobre nós mesmos, precisamos de soluções rápidas e nos vemos evoluídos por construir e consumir um monte de porcarias que facilitam o nosso dia a dia, depois, trocamos nossos valores pelo valor inventado para essas mesmas porcarias, nos relacionamos como porcarias, nos tornamos pequenas porcarias doentes. É, acho que temos um problema. Á propósito, já tomou seu remédio hoje, você pode estar-se sentindo infeliz? Espero que o meu problema faça com que eu encontre mais pessoas com problema porque entre elas eu vou me sentir normal. Vejo que ainda estou na festa, sem carro para ir embora e uma lata de cerveja, já quente, na mão direita. Jogo a merda da cerva nesse canteiro, atrás de mim, vejo a bonita planta que ficou espetando minhas costas com um de seus galhos, levanto-me para andar um pouco.
Foi naquele momento que nós nos olhamos e, Então, duas ilhas surgiram por de baixo do chão nos elevando por sobre a Terra e, Um imenso mar esverdeado inundou rapidamente tudo ao nosso redor. Ela estava em uma ilha, e, Eu na outra. Ao meu lado um caranguejo, do outro, só o desejo.
- O que faz aqui, pequeno animal. Perguntei.
- Sou seu guia, meu jovem. Respondeu ele serenamente.
Não contestei a estranha situação, o animal era até simpático. Tinha algo mais sério a ser resolvido. Poderia ao menos haver uma ponte que ligasse minha ilha a dela.
- Há uma ponte, garoto! Olhe com mais vontade.
Ao ouvir a fala do crustáceo, olhei novamente e vi realmente uma ponte que ligava as duas ilhas. A ponte parecia apodrecida e pensei que no primeiro passo ela fossa se romper com o peso da minha massa.
- Chegue mais perto. A ponte vai agüentar e, nós sabemos que se ela romper você consegue nadar até lá. Só acredite naquilo que você quer e tenha vontade para fazer.
- Vontade eu tenho, mas pode ser que ela ria quando eu cair na água e, então, ela se vai embora. Veja só, ela está percebendo que estou olhando para lá. Melhor seguir por outro caminho.
- Esse é o único caminho! Siga até lá, meu amigo. Pense por uma vez que pode dar certo. Ela está olhando, mas não por muito tempo. Ela não sabe quem você é, a menos que faça, a menos que fale. Quem foi que te disse que os contos de fada não têm seus pequenos entraves?
Além de simpático, o animal era filósofo. E eu, resolvi ouvi-lo por um breve e difícil instante. Foi quando comecei a andar até a pequena ponte, caminhando com cuidado e sempre olhando confiante para ela que era o meu incentivo. Por um momento, pensei ter esbarrado em alguém, quase caí, mas continuei forte em meu rumo. Ela era perfeita aqui de perto. Nossa, nem pensei no que dizer.
- Você não tem que pensar no que dizer. Só fale o que estiver sentindo e, tente ser claro!
O animal estava agora em meu ombro, já havia quase me esquecido dele. Tudo bem, “não pensar, não pensar, não pensar”. Abri os olhos e ela estava na minha frente com a cara de quem ouviu o que eu pensava. Ou não! Devo ter dito o “não pensar, não pensar, não pensar” em voz alta. Que droga! Fiz de novo.
- Fique calmo, ela está sorrindo. Só explique. É a verdade, não é?
- Ela vai pensar que sou louco. Falei para o bicho tentando me acalmar.
- Ela vai pensar que você é louco se não olhar logo para frente e conversar com ela.
- Você está legal, ela me disse?
- Não falei! Agora, explique!
- Estou bem, é que eu vinha pensando no que te dizer e então pensei que é melhor não pensar porque na verdade vocês não gostam de frases prontas e é sempre melhor ser natural mas você nem sabe o quanto é difícil para eu ser natural e essa confusão toda que está acontecendo me deixou confuso, mas o que é bom, porque agora eu só enxergo você e, Você é linda.
­­- Muito bom, meu jovem. Chega de falar e faça. Pelo sorriso ela gostou mesmo de você e não quer muita conversa.
- Obrigado, caro siri. Agora deixa comigo.

- Você é realmente doidinho.
- Desculpa, isso não era com você. É só um tipo de meditação, você pensa alguma besteira e diz baixinho sem pensar. É como se esquecer do mundo. Nunca vi um sorisso lindo como o seu, assim, tão de perto, sabia?
- Eu também medito, quer ver? E ela aproximou seu rosto do meu depois de dizer.
Foi assim que nós demos nosso primeiro beijo. Eu abri meus olhos e percebi que havia voltado para aquela mesma festa de antigamente. Com a leveza de um pássaro que voa sozinho e livre, já nem entendia mais por que motivo prestava tanta atenção em algo tão normal e banal quanto isso tudo por aqui. Ainda abraçado a ela, vi, sobre meu ombro direito, meu amigo crustáceo que estava aflito. Explicou que estava contente por mim, e, que para ele não tinha muito significado o que ia me dizer, pois ele já era um siri mais sábio e foi exatamente isso que descobri. Ele não era um siri, era um caranguejo, e tanto para mim quanto para ele, parecia difícil compreender o ódio dos outros caranguejos menos sábios que já começavam a corroer os corpos das outras pessoas ao meu lado, me olhando e olhando para meu fiel amigo com incompreensão e desatino, por eu haver me confundido na classificação desses animais. Disse-me ele que os caranguejos são crustáceos decápodes, braquiúros, de pernas terminadas em unhas pontudas e, nunca terminadas em nadadeiras. Esses são os siris. Entendi, então, que o meu nobre caranguejo guia era também um sujeito solitário por ser incompreendido por seus semelhantes somente por não levar tão a sério essas pequenas diferenciações na espécie. Fugimos devagar, eu, ela e meu amigo, escapando dos olhares incompreensíveis de medo daqueles que não conseguem enxergar além da exatidão do concreto.






A PEDRA DAS LUZES




Situa-se bem próximo da Pedra das Luzes um penhasco deverás grande.
Os granitos e minérios que constituem nessa fenda tremenda que emergiu na superfície da Terra são constituídos das mais grossas partes da ignorância acumulada pelos anos surdos que foram vivendo, antes eram vivas como nós, antes de torná-las tão duras consigo mesmo virando pedras paradas e enfadonhas ao ciclo do mundo. Um ciclo que só se move quando um dos grandes sobe a montanha levando, as que menos lhes parecer levianas, assim imagino, algumas pedras consigo. Na maior parte, são pedras ainda perdidas no espaço e indiferentes ao tempo que é um sábio sedutor por envolvê-las em paixões fúteis deixando-as tão enfeitiçadas que só sabem temer ao fim sem aproveitar a mágica do durante.
Quando notam o caminho esquecido, já são duras o suficiente para não ver.
Um homenzinho de estatura bem mediana e, frágil de esqueleto, foi mais um dos que flutuou como um planador, movimentos suaves que pertencem ao olhar da sabedoria, desmerecendo cada uma dessas pedras enfadonhas de estupidez inigualável até no mundo das monocotiledônias, se é que isso cabe como metáfora. Ao chegar próximo ao solo exibiu a alegria estonteante do vôo em seus cílios arregalados, mas o sorriso foi contido por compaixão a extrema pobreza; falta de amor e alegria que naquelas pedras demorariam a brilhar.
Demorariam talvez outra montanha fantástica.
Agora, extremamente grato por pisar o solo, ele havia de agradecer “A Pedra das Luzes” que faiscavam como prata refletindo a luz do sol.
A pedra, demonstrando a mais compreensiva compaixão, foi irônica;
Oh, alma humilde. Por que achas que caiu?Terás que subir como todos os outros de sua família celestial, levando consigo todas as pedras do caminho que puder carregar.
Saibam vocês. Aqueles seres reluzentes de extrema beleza regendo os raios do sol como uma orquestra que recompõe as freqüências das luzes, aquelas pedras iluminadas, a “das luzes” como é aqui conhecida e dorme tranqüila seu sono universal ao pé daquela montanha grande e verde, o penhasco do início da narrativa, já por dentro mostrando um tempero de cores foscas. minério sem luz!, um panetone superficial decorado pelo orgulho que estraga toda a beleza que possa existir em uma pedra, era dessas pedras que nossas amigas “das luzes” se referiram quando propuseram a missão do humilde e frágil homenzinho que flutuou contente do céu ao chão e que não pôde divagar tanto como eu, somente encarregado de narrar o fato pois sou um dos misteriosos minérios que tentará agarrar a cauda desse cometa.
Sou só um dos foscos que vê.
Onde está o homenzinho?
Chorando até agora a dor dos cometas.



NEVOEIRO SOBRE O POLVO VOANDO



por trás das nuvens brancas claras de transparência transpassada por luzes contrastadas vindas das sacadas de um prédio azul branca laranja entre muitos outros edifícios que consumiam a visão de um universo embebido e perdido em tamanha névoa que consumia toda matéria sobrando só o céu em extremo escuro granulando todos os feixes das luxes nos postes nas esquinas silenciosas no abandono do breu lúgubre de borrão impressionista em sua propagação pelas finas gotas de água que nos ares dançavam sem serem atrapalhadas aos redores das fontes de luz iluminadas lutando com uma lua tímida em um espaço de céu que adiante se fazia em laranja avermelhado quando o sol se consumia pela terra caindo por detrás de uma montanha de um vulcão verde mágico explodindo toda sua beleza em rochas fumegantes amarelas que cruzavam por todo o espaço em seus segredos por debaixo da concavidade da atmosfera do planeta que lá mais tempos passados se era um mistério de grandes discussões sobre suas causas e seus devidos efeitos agora banais na época realizada em seus avanços desenraizados deixando-nos maravilhados em nada sem explicações exatas de modo a não notar toda a beleza que congela o tempo na espera que paremos para entendê-la sendo só observando a magia andando por uma rua em uma certa noite nublada realidade banal de cabeças que não conseguem perceber na beleza vaga que somente na concentração pode-nos revelar voando por um céu que jamais existiria em uma dessas mentes sem brilho de segundos que se perdem no não parado para a beleza interior de cada coisa num momento de fantasia e cor e sem falar dos sons de imensidões obscuras que propagam de cada vinculo existencial como nas células dessa grande árvore com pétalas de lilás e violeta refulgentes até a morte evocada pelo branco nas bordas das suas folhas caídas empilhadas sobre um chão de asfalto áspero à visão romantizada que some ao ver de uma carcaça de um pássaro preto rajado por pontos mais que traços brancos que apodrece no chão florido
O tempo não se faz somente nos ponteiros tão quanto na decomposição da matéria
O tempo é movimento e enquanto parado morro mas antes morto pois nem via árvore que gemia por todas suas entranhas violadas pelas rajadas de vento que a consumiam toda como um amante que despe sua ceia de belos seios.
O nevoeiro se abriu e nadando nele é que se viu passar o polvo.

Aquele homem novo e rasgado pelo tempo em que se perdeu seguia a passos rasos pela rua nebulosa em determinada madrugada de um dia qualquer até avistar a bela árvore que se despia toda para o outono enquanto um pássaro se decompunha em pó próximo à uma de suas raízes que cortavam o asfalto que se rachava em seu caminho.
Sentou aos seus pés e no céu viu surgir à coisa.
Viu os tentáculos primeiro.
Curvavam-se para frente e com beleza eram arremessados para trás de todo o corpo grandioso dando assim força ao molusco que se projetava por entre o oceano fantástico das nuvens brancas de fundo roxo pelo resto do céu ostentando sua cabeça enrugada e altiva por sobre o edifício do número duzentos e vinte um da rua Solar dos Moloks.
Suas garras dançavam sensualmente acariciando as nuvens ao seu redor.
Penetrava-as deixando-nas um buraco vazio.
Nevoeiro sobre o polvo que voava. Voava pelo céu de fumaça e se fazia polvo.
Via-se ao centro os olhos negros de esperteza do polvo.
Olhos da escuridão da memória do infinito universal dos céus que trespassou.
Pelo espaço passou capturando motivos para se fazer nadar sem mais uma gota de lenta escrita e pressa por sobre seus tentáculos de letras. Tentáculos capazes de sumir por diversos universos para compreender o infinito escuro que é o não conhecer.
Era isso que trazia aquele animal. Idéias agarradas sobre seus tentáculos.
Idéia de todo um tempo volúvel nos séculos que se foram.
O polvo congelou pequenos pedaços de tempo e os guardou para os universos seguintes.
E como eles vieram?
Em versos.

Foi então que o homem, ainda sentado abaixo daquela árvore vistosa acima do pássaro fedendo à carniça abatido em seu ninho por um chumbo fulminante deixando dois filhotes ainda com fome à espera dê quem lhes de abrigo, viu no céu o grandioso animal curvar-se rapidamente mergulhando através das nuvens para entrar pelo quintal de sua casa.
O homem correu e, passando a chave no portão de entrada, ainda viu o último dos tentáculos atravessar a fresta da janela escorrendo por sobre o cubículo de vidro, o viu entrar na sala seguindo por cima da mesa de jantar derrubando um lustre sobre o chão de madeira, o viu seguir pelo estreito corredor com duas lamparinas amarelas que mais pareciam velas, o viu entrar em seu humilde quarto e lá ficar parado no teto, flutuando.
O homem entrou assustado em seu quarto, olhou bem dentro dos olhos negros e molhados do animal enquanto seguia ao seu lado pretendendo ver seus tentáculos que flutuavam como uma onda propagando no ar e quando ia começar a terminar a primeira estrofe do primeiro verso colado no bicho, o danado lhe soltou uma fumaça negra e espirrou direto para fora do quarto e do mundo para nunca mais voltar.
O homem ainda correu por entre a nuvem negra e chegando ao quintal viu o molusco subir para o universo por entre os galhos de uma árvore verde do jardim.
Sobrou-lhe somente a primeira e única estrofe do paraíso.

se o vago negro ver ao partir
o vago ser não pôde sentir
o saber a que me fez liso
um exilado do paraíso

(julho. 2004)

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