quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Crônica para um entregador de Milão

     CRÔNICA PARA UM ENTREGADOR DE MILÃO








    I







      Soou o despertador às 6:20 a.m.
     O estridente zumbido apesar de ecoar insistente pelo cômodo, tomando por inteiro o volumoso aposento, sobre as ruas dell`Itália deixou-se escutar quase nada. Ao menos parece que não. E sembra-me que nem mesmo pelos dois habitantes, inertes em suas camas, fazia-se ouvir. Nontanto e através das antigas fenestras de madeira, sobre e tanto abafado nas vultosas paredes de pé direito alto. Tééé´Téeé.
     06:21 a.m e aquietou-se. Uma rocha, um quinhão de argila e um defunto: “sabe que enterraram gente aí!”. O que? Nas paredes?- se liga, disse ele vendo no amigo um riso audaz surgir. No horário da ceia, em média 08:30 p.m, reservava-se sempre o momento da digestão pseudo-sábio-discurssiva de pauta livre e generosamente hilariante no desfecho. Entre mentes e serenos nesse instante matinal, o que fizeram em respeito mútuo à dor de quem serve, foi o silêncio. Há quatrocentos anos ou agora, as divisórias calam-se na ante-hora; emudecem naquilo em que os justos mitigam.
     Repousava assim, quem podia, tanto na Via Pietro Crespi quanto na Via Termopili. No cruzamento entre as ruas citadas é onde, no primeiro andar, exato e na esquina de canto, se encontra o quarto; o relógio das horas; a grande bandeira do Brasil estendida na parede branca interna; os dois ignóbeis trabalhadores, justos como a estátua do cavalo de chumbo, ofuscos pela manta e imunes à Chiara. Os umbrais emoldurando as largas janelas no apartamento dão vista tanto à Crespi, quanto a Termopili. Seria incorreto dizê-las varandas, contudo direi que haviam “janelas sacadas”, como o sol de agosto logo mostrará. Essas passagens zelam pela vida: lá resta a morada do despertador; da gente que ali permanece e aconchega-se, relutando em emudecer e ainda inanimados pelo tempo que se narra aqui.





Crespi com a Termopili - Itália, tabachi e neve





     Vive bem abaixo, no piso térreo, a venda da Dona Carmem. Num buco de parede na Crespi situa-se o pequeno armazém assiduamente freqüentado pelos moradores dos arredores. De acolhida em brigas ou beijos devendo-se em acordo com o humor da dona, às vezes alguém lhe deve muito, noutras as contas do mês já batem pela porta, são os ratos modernos, mas a senhora está sempre como um fantasma: sorrateira e com força descomunal de vinte eqüinos; presente por todas as dezenas de nacionalidades vigentes no Loreto.
     Diríamos, parados aqui, que apesar da localidade privilegiada do Loreto, na bússola que é a Piazzale que leva o mesmo nome: em sentido do ponteiro do horário e vendo-o em uma planta baixa, cravados no seu centro, como um casal de turistas estarrecidos que acaba de descer na estação Loreto do metrô, sobem, olham-se e giram em torno de si mesmos, neste sublime centro do mundo que lhe abre em memória, a sensitiva e a felicidade aos dois, em giro abraçam-se no ar, na Piazzale Loreto enquanto vês-se em torno: o Corso Buenos Aires, a Andrea Doria, a Brianza, a Vialle Monza, a Padova, a Costa, a Porpora, a Abruzzi e, novamente cerrando a volta do ponteiro, estaríamos olhando no profundo delta da Buenos Aires que escorre longa até a P.ta Venezia. É uma das rotondas da bellissìma Milano servida numa dessas fatias pelo artista num dos charmosos cafés daqui. Entretanto e apesar desse uivo, aceitando-o como uma enciclopédia valiosa de vida e luta, esse posto milanês não passa de mais uma jóia do subúrbio europeu. Ou começa-se, partindo dali, a sê-lo. Sobretudo pelo fato de estarmos próximos, algumas estações do metrô, seguindo nas vialles principais, cruzando-te: Capital Italiana da Moda, bem perto ao centro cultural e comercial de Milão. Ai estás ti: Loreto alguém-“mas quem se importa?”
     Caindo como uma jóia na orelha de um cigano Etíope, caminhando pelo grandioso Parco Lambro, de jardins para o Parco Della antiga Scuola Statale, por entre suas fontes desativadas, balançando os pequeninos de touca nas cadeiras de balanço, em berços, pelas quadras de esporte e nos jogos improvisados e tomados a sério pelos competidores do cálcio dos milhares di tifosi italiani, como nomeiam si os torcedores fanáticos de futebol, no cricket inglês e preferido dos indianos, dentro da piscina sem água e atual galeria do grafitti, viveiros sem pássaros, rotas de caminhada e corrida, pessoas de gêneros e raças diversas, casebres de madeiras e cimento, árbori como algodão de galhos marrons e ornados em manchas cinza quando neva, de chafarizes como bebedouros, de pedaladas e ciclistas, parques abrindo-se nas frestas da mente para un`outra e mais valiosa: a rara busca reflexiva de um jovem casal num sabato pomeriggio, sentado e lendo em um de seus bancos, parcos di Milano: é a calma do suspiro último. Traduziram-se, dessa lira em sopro lungo, os arredores da Crespi com a Termopili nos fins do inverno, janeiro já fevereiro do ano de 2009.
     Um quarteirão à frente e estaríamos na Vialle Monza. Pouco mais adiante, toparíamos com os leões, arabescos do imponente muro da Stazione Centrale di Milano. Túneis de extensões, vastos e silenciosos, luzes naturais em cada ponta, criadouros de vermes na umidade que escorre, em seu subsolo filmes dignos de nave de ficção científica, túneis que dão passagem por debaixo dos trilhos do trem, de lá Lunigiana, de cá Brianza. Contanto os dois ilustres lavorattori só querem neste minuto que lhes falta dizer, dormir mesmo. Mas um pouco e os ouviremos. Caminhar os olhos por ti, Milano, sobre essa carta, é como correr o sangue pelas memórias e deixá-las fluir, contanto não se prende aqui de tudo: retornemos a Via Crespi, de onde já me perco ou encontro-me e deveria menos afastar-me: “houve lobos ali”.
     Ao lado da venda da Dona Carmem, está uma cantina de vinhos e ainda restaurante. À frente desta, atravessando a rua, existe um “Tabachi”, cantina onde habitualmente toma-se o café acompanhado com croissants di cioccolato ou ao gosto do leitor, degusta-se uma dose de algum cognac e, como o próprio nome sugere, compra-se e fumam-se do lado de fora da loja e por lei ao tabaco. São múltiplos. E pode-se, caso enfrente-se o risco e descartando a lei, descolar sem muita dificuldade o haxixe com o tráfico à céu aberto da rua. De portas para o Tabachi, na esquina oposta ao edifício do relógio, cria-se saborosas refeições na Pizzaria e restaurantes de imigrantes japoneses. De lá é onde se veria, ao sair com o embrulho de viagem ainda quente, abaixo dos beirais que dão acesso ao banquete “ítalo-nipo sapporê fantastic” welcome!, travando-se a verdadeira luta com o movimento constante dos árabes dentre uns mil nos fins de semana, avistaríamos dessa outra esquina da Termopili e Crespi, de vértice contrário ao nosso dorso, em frente ao “Japa”, pizza que merecerá detalhes em minúcias rápidas, miramos ambas as janelas do quarto do apartamento contendo os dois brasileiros, e antes a janela da cozinha do apartamento, painel de acirradas conversas.
     Em dia de sol avistasse um vaso e uma planta, um afresco no árido campo de bataglia: trata-se da bellinha- posta à luz sobre um dos peitoris. “Essa pimenta ou arruda me roti i coglioni”, respondeu ele irônico ao tempo que afagava a plantinha durante a faxina semanal. D`aonde vemos a cena, estamos no restaurante preferido em tempos de lassidão- “Então, o que vai ser, Japa?” Ao qual responderia: Claro. Duas margueritas grandes, 4,00 euro cada, e duas cocas latas, Senhore. Per favore. Grazi tanti. Rostos que mantém sempre uma feição convidativa e carismática.





Plantinha. Itália e neve na Termopili





     Mas isso foi outro dia. São 06:24 a.m neste momento.
     Cobrindo as paredes de vida e por sobre toda a tela abrem-se as duas ruas da Itália. Vendo-me sobre esse painel, abaixo dele e estirado no piso plano, como um varal de peles e couros humanos, e cru, estendido entre os prédios da periferia, presos por um cabo tênue, as vestes já sem um corpo, depois de secas e recolhidas para dentro do inventivo atelier, um último gotejo do meu sangue, já erguido e pronto, esticado como guia para a alma, pertencido e pertencente à realidade sozinha desse cômodo escuro das entranhas, surge no esforço, criado na percepção e ilustrado nas paredes duma mente sem estribos, esculpindo-me e transpondo-me nessa manta de letra para uma outra massa neural e palpável para ti: emerge uma tela. Por ti leitor que agora o tens sob domínio. O papel e os ossos queimam; o virtuosismo tende a permanecer ileso e sóbrio.
     Nesse caso de afinco literário seria de possibilidade e até de sublime gosto prosseguir preenchendo os ambientes em pingos de valor ao parágrafo, como numa action painting, deveria citá-los por demais e em gotas todos os outros médios comércios; cabines de telefones e internet; lavanderias; inúmeros “Kebabs”, departamentos de vestiários e maletas, por demais e em excesso e dentro de um fluxo infinito e hipnótico de ação como Mr. Jackson Pollock no jardim da casa dele. É parte do saber: “todo criador tem que delimitar um fim ao risco: o traço último”, ao qual o mesmo responderia em recíproco e lascivo conceito; tomando o derradeiro gole da cola -“escuta-me- dando uma pausa dramática o mestre continua e dita seu veredicto, - o desenho profético que vejo pra ti: seu risco é que não haja mecenas que lhe cubra em terra” sendo na Europa ou em qualquer torpe e sólido buco desse mundo. “há há há”. Mas fiquemos por enquanto somente nesses ambientes recentes e mais humanos á quem narra e colore seu loreto-humanis milanese.
     Quando o despertador tocou, da prima volta, na letra e distantes linhas para trás, não era uma quinta-feira (giovedì). Sendo assim, não lhes enfadou o vasto movimento de feirantes na Via Termopili, armando as barracas de frutas em tons e sobre tons e cheiros muitos, estendendo balcões à marteladas; armando peixarias ao céu aberto, prateleiras de calças e vestidos, doces, brinquedos e quinquilharias de todos os tamanhos, enfim e de tudo e mais que suporta davvero a feira de rua italiana. Seus “ciganos” vindos nas quintas em trailers ou carroças, trazendo naquilo que pudessem carregar à lhes oferecer aos gritos ou sussurros. Esse comércio livre e amarrado nele mesmo era varrido, limpado às pressas depois da festa feita, por uma figura de uniforme e boné sobre “o monstro verde d´aço” na voz das crianças. O “ciber-ítalo psico” vinha dirigindo naquela estranha máquina, guiando a ele e a ela, e sabe-se lá no que fixava-se em delírios os seus olhos fervendo a sopa de tartaruga, assustadora figura num trator para quem nunca os havia visto, como um treco verde de debulhar trigo -esse sim já visto e tomado aqui como referência- acima duma haste frontal ele suporta a imensa esteira giratória, a grande enceradeira com rolos de aço e esguichos d´agua dança conduzida pela mão do funcionário, arrancando das ruas os vestígios do que foi no palco a feria, a feira Italis: uma peça do absurdo de estranhos diálogos, prováveis e antigas vendas casadas e, quiçá: alguma história de amor, por entre e detrás dos balcões das frutas, peras e mellas. Antes algum “barboni” pôde catar as sobras. Ah Santa Ceia! “L`Italia L`Italia”, suas botas negras não jogaram para debaixo do asfalto a poeira tóxica e ainda teimas, ti oh bella, em errar por suas urnas. “Berlusco”: a miséria e corrupção persistem e mancham ainda as ruas desse país de vergonha. Tarde foi e assim por detrás da máquina surgiram outros dos verdes funcionários, apaziguando e dando por cessada a Via Crespi, calma em seu contexto, de volta aos seus habitantes.
     Mesmo que dissimulassem ter ouvido o primeiro zumbo da Chiara elétrica, aparelho que ao mesmo tempo era o GPS do automóvel e o relógio, ela havia triscado na prateleira da TV sem pudor. Estalou sobre a madeira. Esse mesmo móvel comporta ainda o vídeo-game, uma filmadora portátil, CD players, IPod, algum ou outro dicionário e, fica-se sabido que as duas figuras, homens que simularam dormir, cada qual em sua cama disposta em um “L” dominante total do espaço do dormitório, pois era o móvel de utilidade máxima e somente disputado com o sofá no descanso, usado este também por cabide de roupa, apoio de cabeça para jogadores de game, logo ao lado uma mesa de cabeceira, mais adiante e na parede oposta estava o guarda-roupa, de fato, ao cabo deste a escrivaninha com o note.
     Na parede a bandeira Brasileira tremia iluminando o forçoso e inevitável destino; a rotina pr`aqueles que trabalham duro. Por mais que lutassem contra a constatação do dia-dia de “pedra”, teimariam eles, contanto já se encontravam ambos sonolentos, despertos e, aflitos.
     Aquietaram-se, conscientes do que viria dali á pouco, somente aguardando o segundo e funesto, o desfecho de Chiara -GPS galo radio multifuncional- carrasco e ela tocou, “trim trim” e após os cinco metódicos minutos que tomam, quem sabe aonde vais, a leitura dessa introdução e, já não menos aguardado, ouviu-se no quarto a voz de um homem: 06.25.





Italian room




-06:25, Vamo Borba – Borbaci Pansa espreguiçou-se esticando as pernas e braços que vazaram pelos lados do colchão. Turci Mestri olhava o teto enquanto dizia – a Và Vàaa ffanculo - Tinha desses acessos de revolta contra o vento.

- Questa merda de relógio tem que ser regulada para mais tarde – relutou Borba, continuando a discussão da noite anterior – Teríamos ainda tempo ... – A voz tomou um tom amigável – Eu estava sonhando em inglês – concluiu ele.

    Pansa passeava em terras irlandesas no sono santo de pouco, cantando os pronomes da língua “him her their, our” o que lhe trouxe um bom humor carismático na matina, enquanto ao companheiro Mestri, trouxe um pouco de espanto e desassossego durante o torpor.
    Prontamente levantava o eufórico Borbaci Pansa entrando no vigor da guerra, no que teve em resposta instantânea um majestoso flato. Abraçado em suas pernas alongando-as em direção ao corpo, como um animal que se encolhe ainda em sua casca, tendo ouvido àquilo sobre sonho inglês Turci Mestri espremeu as cochas contra o peito e com um estrondoso ruído deu por finalizado a história. Próooooo.

- Porco Dìo- falou de forma esticada Borbaci Pansa- Póooorrrrrco- e entre os risos levantou-se por inteiro – Dìo Cane – dizia ao passar ao lado da cama de Mestri em forma caramujo, olhou-o no rosto simpático e escutou dele:

- Estou meio mal.- alisando sua barriga e sarcástico, disse Turci Mestri – Devem ter sido as bolinhas – referindo-se aos burgers do Mc Donalds.

     Borba balançou a cabeça em reprovação ao ato sujo e desleal do colega, seguiu para o ambiente ao lado, abriu as largas arestas de vidro da fenestra da cozinha, retirou sobre a máquina de lavar que permanecia entre a pia de louças e a geladeira e onde ficavam três armarinhos e também abaixo desta um lugar de guardar panelas, agarrou e armou as peças no que formaria uma cafeteira de metal.
     Pequena e ideal, genialidade da estética e design humano distribuído por três partes: console d`água, coador do vapor, capacitor por onde emanam uma porção exata de duas xícaras de líquido de cafeína pura já coada. Colocou o pó apertando-o bem com a colher e retirando a sobra deste com a mesma, retornando-o cuidadosamente de volta ao frasco do pó de café no armário, deixou-a ao fogo e seguiu para o banheiro. Cantarolava satisfeito –“mine, him, her, yours, our, their”
     Existem três extensões externas do aquecedor á gás nos cômodos. Esses vínculos calorosos são tubulações metálicas brancas, similares às cortinas de tecidos retorcidos: uma cortina de divisórias de provadores, quando fechadas, entretanto de ferro e quente.
    O regulador da temperatura do aquecedor é uma máquina sobre a geladeira. Parece com qualquer outro armário da casa. As tubulações são responsáveis pelo aquecimento no apartamento: uma fica atrás da mesinha de madeira para três lugares na cozinha que é também a da sala de estar; a segunda está no quarto atrás do sofá cabide e, a outra é um quadro retangular de varetas finas com gás quente interno na parede do banheiro, esta é ideal para secagem das roupas e toalhas molhadas. Habitualmente usam-se as outras saídas de calor para essa função, ainda como secadora, mas o feito acarreta a diminuição do aquecimento do ambiente. Foi na do banheiro que Borba apanhou o pano da louça e retornou à sala para fazer o desaiuno.





vista de cozinha sobre luz da Crespi




     Turci Mestri encontrava-se empoleirado na cadeira de canto próximo à geladeira, afagando a cabeça em círculos como que inquieto para contar-lhe algo.

- Você não ouviu nada ontem?- indagou Mestri sentando-se definitivo na cadeira da mesinha.

- Não – respondeu-lhe Borba servindo-os o café.

     Pansa já havia se acostumado ouvir Mestri contar sobre as indagações, dadas aos berros da janela e mantidas assiduamente, noite após noite, entre os vândalos da Rua Crespi e Termopili e ele no umbral. Era um tanto invejável que Borbaci somente dormisse enquanto o amigo perdia os cabelos se arrabiando com algum figlio de tróia qualquer, por incontáveis motivos.
     Às vezes acordava, via-os e retornava dormir. O Romeo e as Julietas, ou vice e versa, de fora a ladainha e de dentro o ódio. Essa sátira moderna à qual ensaiava Turci Mestri para atuar, nem passou perto sabê-la ou ouvi-la, deveria estar sobre os campos verdes célticos no momento; no colo de Carina, e somente escutava ansioso Turci pronunciar com rigor dramático de um profissional a história:

- Tinha um casal brigando aqui em baixo, em frente à Carmem- referia-se ao armazém- Umas 3:00 da manhã – ia despendendo o texto em pausa- O cara parecia que iria dar na cara da putana, segurava-lhe pelo cabelo- dizia Mestri.

- Você falou com eles? –Borba já comia um sanduíche com queijo e frutas e geléia. Enquanto alimentava-se ainda de curiosidade pelas pausas e caretas de Turci – Falou?- perguntou-lhe novamente.

- Primeiro somente fiquei olhando-os – contava-lhe Mestri - abri os braços daqui de cima e o testa continuou – começava ter um veio sodomista na fala que atiçava o curioso Borba – não tive dúvidas, peguei um jarro da água e Tsàaaaaaaa no cara pela janela- disse de uma vez.

- Non ti credo- Borbaci passava geléia de amora sobre o pão retirado da torradeira- Por que você não me chamou pra ver? Dizia-o frustrado por não presenciar a cena.

- Cara foi perfeito – falava ele satisfeito consigo mesmo pelo esguicho certeiro – O cornutto todo molhado não soube o que fazer, enquanto o vizinho ai da frente grita: “ Bravo!” pra mim – na sala era só risos.

- E então o casal de merda foi saindo mudo e em retirada – desferiu Turci Mestri triunfante.

     As compras de mantimentos alimentícios haviam sido feitas por Mestri dois dias atrás, na geladeira que ele olha ainda tem diversas especiarias, mas o queijo, um dos tipos de danone e a carne, que deveriam ser guardadas para o Leandro, filho de Turci que vivia com a Sara e vinha aos sábados intercalados passar o dia com eles, tinham sido “saqueados”.

- Oh rato – referindo-se ao Borba com respiração dos que preocupam não chegando à bravejar - Vê se deixa comida pro Leandro – notando um pouco de inquietação na sala, Mestri diz brando – A mãe dele não dà carne pro moleque – e resume já sorrindo – O bastardo tem que comer essas cosas aqui.

- E você Mestri não vai comer nada? Pergunta-lhe Borba enquanto Turci virava-se para pegar um dos danones do menino da geladeira, um pouco de mel no vidro na fruteira. Então Mestri vê que a luz do “stand by” da maquina de lavar está ligada enquanto ia agarrando uma maçã sobre a mesma.

- Desde que horas a máquina está ligada? Questiona reto ao Borbaci que dirigindo-se à pia lavava seu prato e xícaras.

- Porra cara, foi mal esqueci de desligá-la – e rápido Borbaci gira o controlador da máquina e a desliga de todo – Foda mesmo, sempre esqueço ... – admite a falha.

- Você tem que ligar essa cabecinha sua de vento e prestar atenção nessas coisas – disse Turci sério- Isso fica forçando o motor e se essa merda trava... – O som foi ficando distante.

     Borbaci Pansa havia terminado a refeição matinal e desconversava seguindo para o quarto onde estavam suas blusas, uma preta da MTV com gorro, presente de Turci e, uma azul de malha fina, e a calça jeans, devidamente acalentados entre o sofá e a parede. Apanhou-as. A cena novamente lembrou-o da Irlanda, enquanto vestia-se passando pernas e braços pelo tecido quente. Aprendera usar o aquecimento como secador na casa da Rose e do Paudìe, o casal que o recebeu na ilha verde. A casa deles na cidade de Cork era confortável e ficava dentro de um condomínio aberto com um campo de golfe nos fundos. Foi duro acostumar-se com o novo convívio numa casa de jovens, quando foi morar com duas irlandesas e uma húngara. Somente porque o controle era rigidamente feito pelo Lord Land, pessoa que super-fatura os cômodos de um imóvel do qual não é proprietário para o aluguel aos terceiros explorando-os. O aquecimento dali funcionava no começo da noite e bem de manhã, na BallyHolley Road, o quê para um brasileiro recém vindo dos trópicos imaginando que suas grossas blusas serviriam de mantas, acordaria tremendo naquilo que buscou mover-se para evitar uma hipotermia. Aprendeu.
     Absolutamente teria curado uma outra hipotermia com o auxilio da Elaine, enrolada na toalha no meio-porta e sugestivamente sugerindo-lhe – “HI, do you want to use the bath before me?” e depois na despedida deitada em sua cama –“Came in- and Bye bye” ou com a Rossa, a extrovertida italiana que veio aconselhada por ele no lugar da húngara. A outra irlandesa com caso com o londrino meio bandido dispensaria. Em todos os casos possíveis já estava Borba enfeitiçado por Carina, a bella, a Espanha. Olé.





Irish room




     Havia sido desse modo nos fins de dezembro de 2008 e lembrava-se como se fosse agora enquanto ligava a tv à cabo nos best hits. Ao que Turci já fazia uma cara fechada porque eram músicas enlatadas e na realidade o eram mesmo. O quê Bach não vê a memória sensitiva dos Irish Pubs sente.
     Mas daqui também se têm memórias e é agarrando-se numa dessas que Borbaci ri:

- Turci, ontem foi muito engraçado –Borba diz atropelando as palavras- O chuveiro queimando teu pêlo - Borbaci solta uma inspiradora risada colocando qualquer um em seu estado de espírito – Tsáaaaaa Bastardo- imita Mestri no banho.

     Ele se referia ao fato de a água da ducha esquentar repentina e absurdamente quando ligada em sincronia com a água que escorria da pia na cozinha. Turci Mestri o alertava que iria ao banho, para não lavar a louça, mas sem maldade Borbaci Pansa era acometido da enorme distração que lhe passava naquela época de viagem, mental e física, então destravava a torneira ouvindo o urro:

- Bastarrrrrrrdooooo – ahhhhhhhh – e risos.

     Agora, 06:44 a.m, ambos já estavam findos para mais um dia de entregas; “pedras Plose” San Pelegrino e fusto Rei, intermitentes e costurando à moda Suor gabbana pelas ruas Milanesas.
     Lembrai-vos: a crônica desse dúbio cotidiano só teve aqui o seu começo, naquilo que se pôde ser contado de leve e tentando manter a destreza mansa do deslize criativo. O artista, utilizando-se do pincel de pêlos finos; não grelhados em água fervente de ducha antiga, resguarda o direito e colhe da eufórica astúcia o jubilo: alegria daqueles raros seres que atravessam o verão e a primavera da vida sem mesmo notar o sentido da maré desses dias.
     Turci Mestri vendo um novelo de pelo humano pelo chão imita um felino. Nhéeeeeeuummm

- Afeee- diz apontando o novelo que corre do quarto para cozinha e dá um outro grunido- Nhééééummmm-

Risos.


-Olha o gato!- fala e defendendo-se do ataque certo, Borbaci emenda – A limpeza é só de domingo.

- Pegue a garrafa vazia da Heineken e o reciclável, ao menos.

- Si Si, já iria me esquecer – no que disse Turci:

-Eu sei.


     São exatos um quarto para às 7:00 a.m.
     6.45 e a terça-feira apresenta-se nos seus leves brilhos nel sole dell`Italia somente para esses dois indivíduos: com dignidade.





Reveillon no Castello Sforzesco Milano 2009



torre do Sforzesco iluminada para as festas 2009








II







     Iam andando no curto caminho para a saída do apartamento. Devem para tal atravessar a divisória marrom, a tal porta de correr os roedores, mantida sempre fechada quando se faz separar a sala cozinha do banheiro e da despensa. Quando se entrava eram os dois cômodos, o banheiro e a despensa – “depósito de tralhas em desuso”-, um em frente ao outro, no estreito lugar, acolhendo o “passageiro” de braços abertos – “Ou caga ou deixa os mantimentos para depois cagá-los”-. Não havia a placa, mas se poderia tê-la posto. Numa rápida vista levada sobre as prateleiras do armazém doméstico, pelo veio da divisa, viu estarem já nos fins o estoque de coca-cola. Turci Mestri pensava nesse instante que seria propício, o dia e a sede, sem estender-se em pormenores; delongas e remorso, surrupiar-lhe duas mais embalagens de vinte e quatro cada uma. Seria na entrega da Via Tartaglia com a Monviso. “Vecchio de merda” o patrão perdia nessa, há que se entender.
     Ainda sobre a soleira da porta afastaram com seus pés os pares de calçados enquanto apanhavam os grossos casacos pendurados. Restavam no suporte de ganchos dourados, gastos nas ponteiras arredondadas, oblíquas com as alças cortadas na metade duma circunferência. Borba ajeitava-se um último segundo, arrumando a touca de lã, em frente ao espelho do banheiro. Disse ele, ao que foi desprezado por Mestri: “Sei bello” - e vendo o companheiro zangar-se com o importuno de momento, emendou – “E gênio”. E de retorno ouviste o terço e matinal “A Vàtene à ffanculo...”. Saíram de vez às 06:46:13.
     Borbaci saiu antes e Turci, mantendo as chaves e girando as travas, veio em seguida. Por mais que Borbaci Pansa tivesse suas próprias cópias, não confiava a ele o feito de zelar pela segurança, fechando-os, nos ferrolhos o lar, Mestri mesmo como garantia o fazia. Logo depois, rogava-lhe um outro rito - numa dessas alegrias que somente insolências sem muito sentido e menor prejuízo alheio nos assoma – acometia a Mestri de raspar frequentemente as solas do calçado no carpete dos vizinhos. Ria sorrateiro e audacioso. Borba olhava-o imaginando aquilo hilariante, seu triunfo sobre o mundo ali começava e o deixara assim permanecer, num reino de pequenos prazeres, ditados pelo amico: “il maestro do Mico”, Turci Mestri. Contudo o que lhe atraia a atenção de momento, já estando no piso largo entre os degraus da escadaria era aquele elevador. Uma caixa velha em que não entraria nem por reza e que estava sempre trancado a chaves. Bastavam-lhe, como emoção numa dose exata, todos os outros elevadores que usava carregando as entregas pelos edifícios de Milão.
     Concluíra Borbaci Pansa, que a Europa, em seus edifícios antiquados, dizia-lhe como o continente velho em si mesmo era: ao público mostra-se uma embalagem em ruínas, por dentro zela os teus palácios de beleza; cultura e riquezas inimagináveis, mantidas em reserva como um bom vinho, onde só descobre-se o valor quando o tem próximo, confiante, no primeiro gole que reflete-nos na alma o tesouro oculto. E eram tantos esses castelos. No entretempo de espera e por excitação causada das reminiscências espontâneas no quadro dessa memória, Pansa subiu ao segundo andar e, nos poucos segundos, teve como guardo o olhar: um dos árabes que estendia uma tapeçaria na sacada coletiva.




"um dos árabes que estendia uma tapeçaria na sacada coletiva"




     Como nas poeiras sendo batidas e voando da indumentária oriental, adereço que vestia o solo na sala de alguma dessas janelas verdes e, pertencendo ao especial colorido dos fios que adornavam a peça, Borbaci Pansa anteviu num “deja vu” e pertenceu ao futuro próximo que atravessaria. Tecia ele em si, ainda que turvo e obscuro e, por entre os fios de linhas cabalísticas traçava a tapeçaria do transcendente: a peça da intuição. Mesmo que dali nada soubesse - os lapsos são as pistas dos mistérios libertos da consciência rasa, enquanto a outra é ilimitada – aquilo o era exposto como uma cruzada. Nada nos esclarece de todo ao enigma; esse tamanho delírio lúcido somente permite-nos e, ao nosso espírito, algo de sublime ou trágico, precaver-nos. Sempre vira-se, ao que lho sabe, mudará o sentido dessa história. Desse modo Borba viu-se ali, naquelas sacadas de argila, numa noite próxima e sentado sobre a divisa, entre a grade em que o árabe estendia a peça, entre as paredes das casas, deitado em espera e reza por alguma resposta aos seus anseios. Tentava extrair das estrelas, o brilho dado a elas por um entardecer que se tornaria longo e lúgubre.
     Dormira no térreo, pois nesse estreito espaço de varanda seria impossível ficar e, também, porque passavam, em determinados momentos, os outros moradores. Quando uma delas o viu ajeitando-se sobre as blusas e a mochila, deixando-o frustrado novamente por não servir o elevador trancado, dum modo que tinham como passagem única os corredores e as escadas, qualquer dos transeuntes do condomínio o encontraria ali. Tamanha é a força que o impressionismo, o simples fato de acharmo-nos fazendo algo errado, que nesse momento Borbaci extravasava os acontecimentos, não estando mais no real ou no suposto real, mas no beco escuro do medo. Parecia-lhe assim que eles o encontrariam vendo-o como um bicho, caído e largado, um mendigo ou algo pior: um estrangeiro sem documentos. E como seus sentidos encontravam-se estimulados pelo perigo, enquanto o falso caçador nos persegue, apresenta-nos em nervos aflitivos a premonição trágica: pensava dali que a policia viria em breve.
     Era estranho e assustador para ambos, então vendo dois casais entrarem no apartamento, Borba se ajeitava numa saliência da parede onde cabia exato um corpo, viu que seria descoberto. Pensou em cumprimentar-lhes naturalmente, o que o fez. Incrível que o fosse aquele gesto amistoso piorara a situação: notava neles que os havia assustado. Assustava-se Pansa mesmo com enorme freqüência.
     Ao ser percebido pelos prováveis traficantes ou usuários de heroína chegará ao ápice do temor. Os grupos consumiam os papelotes, fumavam a droga sobre um alumínio, reunidos no vão dos prédios, no piso térreo. Olhava-os da sacada e, como aquele que já se vê condescendente com o ilegal, “pois és tu também o ilegal”, ainda ali, atrai-nos, até mesmo sendo piedoso ao erro, como uma família a gangue. Não tirara a cena da atenção como que anunciando: “sou um de vos fratelli, não lhos apontarei!” e acabara notado por um deles. Poderia facilmente guardar o ameaçador olhar pelo resto da vida em sua mente. Resolvera sair logo dali e, de vez, desceu.





"Sempre vira-se, ao que lho sabe, mudará o sentido dessa história"
 
 
 
     
     Na sala do térreo havia quatro ou mais pares dessas cadeiras escolares, acentos e encosto de placas de madeiras finas, nódoas planta, e armação de ferro preto enferrujado nas lascas. Enfileirou três delas, os dorsos apoiadas na parede e, usando-as de cama, deitara-se sobre a mochila jeans, assim lhe serviria de travesseiro e, de segurança, ele sobre a mesma durante o tempo que dormisse por ali. As escadarias do edifício e também esse cômodo e também o enredo que se formava lembravam-lhe Os Incompreendidos – Les Quatre cents coup, François Truffaut -. Compreendia não ser mais um adolescente e nem mesmo um italiano, nem europeu e, logo duma aventura pueril aquilo pudesse se tornar um crime, se o fosse descoberto. Seria no mínimo deportado. De momento havia-lhe passado à probabilidade ao acaso claramente numa idéia entorpecida a imagem. Resolveu ajeitar-se e pensar numa escusa qualquer se acontecesse; teria saído sem as chaves ou algo do gênero.
     Nesse depósito e agora abrigo constava ainda um tanque velho e sujo como uma torneira emperrada e gotejante sobre respingos de argamassa e cimento. Foi onde escovou os dentes e pensou poder lavar alguma roupa. Lembrava-se ainda ter mexido numa tela velha sobre o chão, talvez uma lousa. Não distinguiu ao certo de quem era a cópia ou ilustração e passava-lha como uma tempestade qualquer de Gustav Klimt, o que poderiam facilmente ser compreendidos como seus próprios desequilíbrios emocionais e pesares de instante, criando numa mente superexcitada uma alucinação qualquer, sem que houvesse a necessidade de quadro nenhum; provável deparasse em situação normal com um mural em branco sobre o chão. Não mais quis saber o que de além haveria ali, pensava em prováveis roedores que pudesse encontrar pelas caixas, ver-se-iam as cenas finais da tortura de 1984 em imagem e preferiu ficar aquém dos princípios curiosos. Finalmente vencido os sentidos de alerta, rendeu-se e dormiu por algumas horas. Começava o verão em Milão e já fazia muito calor mesmo depois de anoitecer.
     Teria que sair de madrugada. De manhã a coleta do lixo era feita aos sábados, e sendo sábado, foi o que fez. Antes de atravessar, olhava e escutava enquanto sorrateiro caminhou constatando se ninguém o tinha visto. Estava no fundo de um corredor, logo ao lado direito de quem vem pela entrada principal. Não havia ninguém, somente as primeiras luzes do dia na Crespi. Dirigiu-se ao parco da scuola statale, parque duma antiga fonte de água – virando a esquina da Pietro Crespi avista-se a casa com a data da abertura e fechamento da mina. Onde o sol bonito já raiava nas paredes tirando como magia os perigos vindouros naquela jornada se o tivesse que continuar assim: nas ruas.
     Andara pelo gramado, o lugar estava absolutamente vazio. Tomara banho num dos chafarizes, então, enquanto estavam secando-se ele e também suas roupas, num dos bancos públicos num corredor de árvores canadenses – devido ao formato das folhas e não pesquisa do real nome assim as compreendia - conversara com uma velha de aparência de louca. A senhora acabava-lhe alertando ao risco de ser pego pela polícia de imigração, pois ela mesma demonstrara ser preconceituosa perante imigrantes e demonstrara ser estúpida, feito qualquer outro italiano médio, que sem saber tomar partido próprio e racional em posturas sócio políticas, ficam à margem duma realidade mais complexa daquela que diz o padre. A princípio o aceitara como uma boa pessoa em conversa e, depois, ao interpretar que Borbaci tinha âmbito contrário ao sistema opressor, seja ele qual fosse, a dona soltara suas obesas garras para fora – “Pensi essere uno errore” – ah!, enquanto despendia a falar como robô pelas notícias vigentes; vinculadas nas tvs e jornais italianos, tão ou excedentes em sensacionalismo quanto os noticiários brasileiros. Todos os médios pregavam em relação aos perigosos estrangeiros uma única regra: distância.





"num dos bancos públicos num corredor de árvores canadenses"




"Todos os médios pregavam em relação aos perigosos estrangeiros uma única regra: distância."


 

     Eram 6:48:44. Com cumprimento cortês ondulou ao árabe na sacada. O tapete brilhava.
     Descera ao ver no relógio. As coletas dos recicláveis eram feitas diretas nos grandes tambores de cor diferenciadas deixados no térreo. Cada cor uma matéria. Olhar o centro dos edifícios dali era sublime, como se fosse um grande funil, uma tela que mostrava o céu azul, de agora, e cinza neve quando nevou. “Neve que somente secará em abril”, dizia ao Mestri que ria da teoria dos meses em degelo pelo pensamento devaneado e lúdico de Pansa. Saíram pela grande porta da fortaleza, o que em realidade não era sentido de dizer. A tranca de entrada e saída era uma espessa e grossa portalha de madeira, com parafusos gigantes nas fendas, enquanto abria-se opostamente numa pequena luz, sendo que a portinha de saída era um espaço, e minúsculo em contrapartida, existente no canto inferior direito dessa barragem humana ou de tudo o que se quisesse impedir. Somente abria-se de todo o monstro com a coleta do reciclável; numa eventual mudança de algum condômino ou despejo de bices velhas – alegria geral dos catadores que agora catariam não mais aos pés no chão -, aos pedais. Nunca soube quem o tinha a chave. Talvez Dona Carmem o soubesse. Certamente.
     O Peugeot 207 preto estava bem em frente ao portão, sinal que por sorte ou habilidade ou menos entregas feitas, - dar o “gato” era tática usurpada de Turci -, haviam eles terminado cedo, na tarde, o trabalho no dia anterior. “nhéééeummmm!” Uma das mazelas européias é encontrar vaga nas ruas. “c`è qualcuno posto, fratello?” – Magari sulla sinistra - Quanto mais tarde, pior o fica. Era sinistro mesmo. São como os lobos em matilha ou as hienas em aguardo. Saíram em direção ao parco da fontana, “no di Trevi, mas di cuore a mais próxima e sem boca”, - No money no fun e senza Roma anche -. Tornaram a esquerda na Marco Aurélio e a esquerda novamente na via Roggia Scagna entrando em seguida na Viale Monza, direção ao Turro a ao Gorla, afastando-se do centro de Milão e do vecchio Loreto de guerra.
     Partiam agora para onde estaria o velho; o seu filho tosco –“é burro feito uma pedra”-; as caixas ploses, san pellegro, don perrier, foster e fustos enfim, onde permanecia o depósito todo da Breda. Como uma capela em zelo à espera dos espíritos santos entregadores, lá permanecia. As mazelas nunca destroem de todo tais catedrais sagradas. Eram 6:52 no painel do 207 e nos falantes o profeta da Lifegate soltava as primas “maldições” del giorno, após as trombetas usuais anunciava o locutor alguma filosofia pra trazer-nos convicção e força, “sulla prima luce da matina”, quando da penitência, bastavam-lhes os ossos que doíam e velavam; rogavam meia hora mais de cama. Quentes e quebrados.





"O Peugeot 207 preto estava bem em frente ao portão"



     Poder-se-ia por recursos literais pausar a narrativa sem que disso o soubessem. Não é o caso. Colocado em harmonia, um arabesco ornado pelas águas, cruza a Viale Monza o canal de Martesana. Cortando o Gorla e o Turro corre por baixo duma ponte amarela, singela ainda que humilde, o Naviglio Martesana. Esse Naviglio segue até o rio Adda, nos arredores de Milão. O Adda é o mais importante rio que corre nos campos milaneses. Os arredores da pérola Lombarda são férteis e produtivos graças á água -água que desce dos alpes- “e depois de furgões amarelos todo fodido pelas mãos de funcionários mais ferrados ainda” sendo canalizada nos Navigli artificiais ou naturais que adornan-te: Milano. Essas corredeiras foram fornecedores de antigas hidrelétricas, atualmente desativadas – não soube ao certo se todas -, e que surgem como belíssimas catedrais; monumentos da história, um maestro pausando e recomeçando a melodia do Adda, entretendo nas barreiras ao longo do canal os visitantes e corredores também ciclistas e desavisados. Uma sonata que acresce em graça os passeios pela sebe. Paisagens de visões espetaculares, correndo entre o Bassa, no vale do Baixo Po, e refletindo os barcos, espelha as bicicletas entre as trilhas ao redor.
     A indústria e o mercado da moda, o alto design de Milão, que regularmente atrai amontoados de jornalistas e grande porção de moeda estrangeira, bem-vinda certamente, a priori teve suas origens nos teares situados ao lado do rio Adda. O mármore usado na construção do Duomo e seus “golons” foi ainda carregado para cidade por via desses Navigli todos. Não nos bastasse já tê-lo adornado em letras finas, resta-nos saber: foi nos arredores do Adda que possivelmente um dos ícones da história da arte ocidental poderia ter preconcebido em imagem algumas de suas famosas obras, enquanto foi hóspede da família Melzi. Nesses campos verdes irrigados por deltas de fortuna, nas villa de Adda, pisou um imigrante à procura de trabalho em Milão, um certo Leonardo: um Leonardo que, não tendo um sobrenome, foi simplesmente chamado pelo nome da região da Itália que ele havia vindo: Vinci.





"Esse Naviglio segue até o rio Adda, nos arredores de Milão"




"e que surgem como belíssimas catedrais; monumentos da história, um maestro pausando e recomeçando a melodia do Adda"



     Deixo-vos esse pedido para que mantenham sua atenção ao cruzar um dos navigli milaneses. Pois na Viale Monza, enquanto vista os diversos comércios árabes, turcos, argelinos, que ali se instalaram Borbaci entreter-se-ia aos risos, nem percebendo os arabescos da ponte. Acabava de ver um dos kebabs no qual haviam almoçado e onde ocorreu uma cena hilariante, lembrança da qual não se deve conter o riso pensando em histórias enfadonhas de rios e coisas tais: Turci pedira apressado o seu kebab, lanche turco de carne de carneiro, uns são maravilha, outros, como se diz, “bons para memória”, pedira-o sem pimenta. Geralmente a pimenta é brava; vermelha ao fogo. O atendente deveria ter entendido com tanta pimenta ao contrário do que seria o lanche de Borba com tanta Maionese. Na pressa de matar a fome que lhe matava Turci agarrou o primeiro lanche que lhe veio às mãos. Chegava ao riso lembrá-lo das caretas na feição, após a primeira mordida salivante, aquela da dentada das expectativa e delírio gustativo, essa foi-lhe desastrosa e rude; ardente. Havia uma parede de espelho na frente deles, sentados nesses banquinhos altos, enquanto Turci iria mordendo e dizendo: “cazzo!, to suando pelas sobrancelhas”, enquanto Borbasi entre mordidas tentava conter seu riso lacônico :”ta tão foda ssim” e Turci dizia: “ta forte pra cacete”, mas continuava comendo “sua cara ta fóda, ta tudo bem contigo?” e ria e Mestri limpava o suor do rosto e comia. Depois, pagou meio insatisfeito dizendo em italiano algo como: ”po meu irmão, era sem pimenta oh bicho”. Estavam diferentes em humor, pois de agora, 6:55:13, Mestri já apresentava no rosto as moléstias que o espírito lhe imprimia, as mágoas estando logo do serviço próximo, enquanto Borbasi Pansa degustava um bom blues, em memória a alegria dum cotidiano escrito, na rádio e portal da vida.
     Então ao ver os Bondes elétricos do Precotto deveriam tornar á esquerda e depois seguindo pela Mattei, Frigia, novamente à esquerda entrando na Via Ezio Andolfato avistando a Via Ernesto Breda ao final desta. Era ali que começaram, durante a espera, os primeiros estudos nas apostilas e dicionários da língua italiana; a vida italis para Borbaci Pansa. Estando no sossego do automóvel causava-lhe uma ânsia de aprendizado - arranca-nos de qualquer conformismo, quando no estrangeiro, restar-nos sozinhos - sendo que não conseguia comunicar-se direito. Corria aos cafés e pegava o jornal do dia, distribuído gratuitamente e, ouvia a todos em volta, os diálogos em sua riqueza torpe. Para Turci eram os últimos segundos com o cigarro e os olhos já aflitos daqueles que seguem para um trabalho que não lhes preenche, tanto em perspectiva quanto em ambição. Assim disse ele, meio que querendo algum incentivo de si ou anjo que passasse: “Vamo vai”. Turci Mestri foi-se. Eram 07:02:25. Pansa não participava no carregamento, era inapropriado ajudá-lo porque estava sem o registro e documentos para trabalho na Itália, não devendo entrar na empresa. Só vira o velho à distância e o filho besta, nunca.
     O 207 preto restava estacionado na Ernesto Breda, com visões do grande edifício em construção, local que existiu uma fogueira num dia de frio num dos andares enquanto a neve caia, surgiram também nas montanhas dos alpes ainda com gelo branco nos cumes no horizonte, e se estacionassem na Via Eduardo Gilardi, era festa nas quadras esportivas e campos de dogs: em V com a Paolo Giacometti formava-se numa praça, abria-se nessas vias um parque de inúmeras andanças até as linhas do bonde, depois de haver escutado e lido cosas diversas e fantásticas. Às vezes, os funcionários colando novos outdoors lembravam-lhe da infância, tentando ler as letras sendo arrastadas uma a uma. Incrível.
     Foram estonteantes todas aquelas preciosas horas matinais. Poesia para alguma espanhola distante na Irlanda, vozes belas pronunciando tons e frases e palavras jamais vistas, salteados pelo bom blues e história dos rock files; os inícios e as andanças dos “Passengers” anunciados pelos trombones, como se fosse como eles, Turci e Borbaci, contanto num trabalho mais lúdico, e o desejo de vê-los algum dia pelas ruas de Milano no puma hibrido, il magic bus. E assim, enquanto distinguimos em presente o presente de viver, vai-nos proporcionando sermos um todo, um tanto desqualificados para um cotidiano mundano e comum; real: passar-nos-ia despercebido esse tesouro maior da terra, em cujos sentidos guardamos nossas memórias. Ainda que nem notemos estarmos sentado sobre ele, ao seu lado, no seu ouvido, no tato dela, assim se fazia a vida mais rica de todas e, ganhava-se em realidade bem pouco dando em troca o espírito em liberdade: era, sempre foi e, será este o segredo da eterna juventude.
     Então Mestri ligava estando já com o magic furgo gialo, furgão amarelo amassado por tudo qu`era canto, totalmente abarrotado de entregas de bebidas para serem realizadas. Mas nunca esqueceria o quanto esses minutos foram vitoriosos e ricos e ambíguos em toda sua raiz - Pensava enquanto corria rápido para entrar no assento de passageiro às 08:43:20 Borbasi Pansa o escudeiro e co-piloto.




 

III







     Ao ouvir do toque o telefonema, Pansa interrompia alguma divagação, empertigando no rosto os riscos; traços do raciocínio inacabado. Surgiu caminhando pela Edoardo Gilardi, na alameda por entre os outdoors, emoldurados pelas altas armações de madeira, acima dele, saindo da praça verde do basquete e dos cães, enquanto no chão o estreito de cimento; a fábrica cinza na murada oposta da via. Seguia calado, às vezes um aceno ou outro pr`algum trabalhador ou andante. Ao virar a esquina, avistará Turci, trajado naquela touca negra esfarrapada acima dum rosto simpático, enquadrado pelo brisas do automóvel, envolto dentro do carisma o mistério sobre o itinerário das entregas, embicando no portão do terreno dos galpões do depósito da Bredas. Surgira afoito e feito pela Hernesto. Guiava com maestria o furgo amarelo pelos “vales das trevas” milaneses. Esperou que o ônibus laranja passasse e atravessou com todo o gás, estacionando no acostamento curto no canto direito, quase sobre uma caçamba de entulhos na rua. Borbaci correu para alcançá-los e quando o fez, entrou entusiasmado. Mestri dissera-lhe: “`Tamo ferrados”, lançando-lhe um punhado de notas fiscais de entrega sobre o colo.
   - Melhor assim. Se tacam-te tudo para hoje, sexta-feira terá menos – o que Mestri não confirmou na feição, desdenhosa e irritadiça, Pansa arrematara-lhe – Se vens a tróia que venhas armado – afirmava.

   - E o vecchio de merda figlio de tròia ainda me chiama de filho.

     Pansa imitou, na memória e em riso, a história que ouvira entre Turci e o patrão, onde Mestri argumentava a propensa saída do emprego ludibriando-lhe o dito “ma io te voglio come uno figlio”, - misto de afago e garra no pêlo esquivo, típico comportamento do patronato nessas horas -, enquanto desmoralizava-lhes a situação adversa das ruas.

   - Tomou o café ai hoje? Turci passava ao lado e adiante seguia referindo-se ao café da esquina da Rucellai com a Breda, entreteve a idéia vendo que Borbaci trazia um folheto qualquer nos bolsos, geralmente entregues nesses estabelecimentos.

   - Não – continuando com riso matreiro a frase - Ta com saudade da dama? - Ao que Turci preferiu não dizer nada e vendo que Pansa agia de bom humor, aumentou o volume do rádio.

     Borbaci Pansa separava as notas por ordem de entrega, revendo em mente o trajeto do dia. Sempre por cima, Mestri deixava os endereços novos; àqueles que tivesse dúvidas da posição, na Terra e no mapa, assim incumbia-lhe localizá-los, alinhando-os junto dos estabelecimentos sabidos; próximas aos endereços rotineiros, nota por nota. Isso levava o tempo de atravessarem, seguindo pela Hernesto Breda, por sobre os trilhos das linhas férreas. Então giravam na meia rotonda para entrar na Via Hemilio De Marchi, bem em frente ao Cimitero di Grego onde Pansa jurava serem furos de bala de guerra os buracos no adornado, de certo modo, muro para lápides. Logo à frente Turci parava com freqüência num mesmo posto onde conhecia os frentistas, Borghetto II, - para encher a goela do furgos com mais diesel -. E saíam cuspindo fogo até a Melchiorre Gioia. Ponto em que a conversa já estaria alinhada, bem como deveriam ficar as notas, todas também alinhadas, ainda que o fosse numa melodia musical de tonalidades difusas, contanto fiscais: com os endereços milaneses em voga na partitura branca.
     Aparece 8:52 nos letreiros digitais nalgum ponto de ônibus da Gioia. Há aqui nesta história, como na estrada em vista, dois rumos possíveis a que se deveriam explicar aos capciosos seguidores: no intuito de se contar ao máximo ou, naquilo que importa do que devêssemos acompanhar obsequiosos, pelos rumos da emoção narrada pela, - e acima disto por -, sobre uma carta de Milão, a maestria será dada prendendo-nos em analogia; em alusão aos fatos gloriosos datados em um calendário de astros miseráveis, ditadas nas aparições mesmas que acompanham os espíritos nas ruas; enquanto se dorme e esvaece do peso e, não muito naquilo que se tomaria como um bom plano de entrega de mercadorias. O quê nos diz que a voz que cantara adelante, o artista a caçou nos altos, no entorpecimento d`alma, - como em dias quentes disfarçam, as nuvens de vapor, derretendo a forma concreta e, não mais místicas, dos objetos iluminados pelo sol -, devendo-nos relacionar-mos nesses pontos como espectadores por analogia de idéias fluídicas e, não somente por buona administração logística, naquilo que diga-se de já, era feito pelo carismático Borbaci com empenho e atenção que lho cabiam: nada ao extremo.
     Sendo assim, primeiro seguiremos pela Viale Luigi Sturzo, no fim da “mel alegria” numa descida e cruzando a estação de metrô da Porta (P.ta) Garibaldi em direção aos monumentos do majestoso Cimitero Monumentale. A outra possibilidade seria tornar a esquerda saindo da Gioia para a Luigi Galvani, não menos interessante e, caminho que será retomado adiante. Agora passavam por diversos guindastes ornando os céus e a paisagem da Sturzo. Mestri lembrou-se de um restaurante mexicano por estas vias, próximo a P.ta Garibaldi, que hoje não fariam. Eram interessante pela decoração das caveiras típicas e da atendente, de resto a escada para o subsolo era bem traiçoeira, como de costume e hambre. Seria alguma possibilidade para um emprego de finais de semana, sendo que passava-lhe a idéia de mudar de ramo. Pansa o sabia.

   - Trabalhar em hotel deve ser tranqüilo – estavam passando em frente a algum.

   - Tudo em que a gente não trabalha ainda parece ser bem tranqüilo – disse alguém.

     Pararam no cruzamento da Carlo Farini na estação de bondes com a G. Ferrari, de vista para Piazzale Cimitero Monumentale. Via-se andando como se fossem abrindo num palco, uma câmera lenta em travelling circular dos mortos, poderia-se supor que eram as estátuas frontais girando, como uma mesa giratória, e não os automóveis no adorno do circulo a fazerem. As fachadas dos cemitérios parecem enfatizar, ironizando o enfado que o envelhecimento trazia para a geração atual, o posicionamento econômico e político do velho continente: Europa, ilustrando o antigo; morto, sem ao menos capacitar aos novos; promissores e promíscuos, melhores oportunidades de crescimento criativo e profissional. - Mudar-se vão todos os seus filhos; aqueles que ainda os têm, vos, numa natalidade ínfima, e continuarão movendo-se, mesmo sem norte, até que lhes guardem com o mesmo carinho que desdenhas as múmias em tuas lápides iluminadas: as cabeças vivas e pensantes o sentem -.

   - Meu caro Mestri, essas estátuas são bem loucas. Quero ser enterrado ai.

   -Podemos começar já o processo. Tens a pá?

   - Nonnn!, porque agora estamos indo para América, o sonho de milhões de brasileiros.

   - Só até carregarem o primeiro fusto. – se nos passa ainda despercebido fustos são barris de aço de cerveja, e Mestri completou-lhe ainda - Ai acaba o riso e começa o choro – e Borbaci bateu o martelo - Ou onde o filho chora e a mamãe não vê.

     Já avistava-se, pós murada monumentale, as inconfundíveis cabines de vidro na Giuseppe Govone. Eram cabines bem ornadas com vidros fumes cobrindo as escadarias rolantes que levavam aos estacionamentos do subsolo. Pizzerie América - vulgo fustos mortais - logo no quadrante, Via Giuseppe Govone com Domenico Cucchiarrii. Parada para tomar café e leitura dos jornais italianos, sendo que a América somente abriria as 10:00 e eram 09:22.
     Lendo no jornal, Borbaci Pansa imaginava situações às vezes interessantes, como de momento, e ia contando-lhe as alusões que o artigo da geração “mili euro” lhe falava, como uma trombeta lúdica, com os pés apoiados no painel largo do Ford amarelo, olhando as ruas ainda sem grande movimento, dizia-nos: “essa á a situação parecida com os jovens europeus todos: espanhóis, italianos - aos montes imigrando por ai -, franceses e alemães em menor grau, que estavam estudando na Irlanda”. Geração mil euro de trabalhos esporádicos, sem pagar o dizimo, tributo da aposentadoria ao estado – Sei lá qual vai ser daqui uns anos, quando nós todos envelhecidos estiver-mos! - e concluía Pansa – Acho que não rolaria algo como foi com os judeus nos fornos, no ciclo Marx somente setenta anos atrás, mas se a coisa apertar para alguma nacionalidade, aqui dos nobres; faltar muito emprego ou simplesmente a população tiver infeliz de certa forma, vai sobrar pros estrangeiros que tiverem na área. – sendo que parece não existir mais área, o que de certa forma é evolução enquanto...
   - Dá um tempo ai, verei se essa merda de pizzeria já abriu.

   - Và Và. E ficava a ler os traços sujos das folhas nos matizes do painel.

     E então já tinha aberto e descarregavam lentamente umas dezoito caixas d`água mas uns sete fustos deixados arrumados num porão gigantesco e escuro. Essas escadarias eram como argilas molhadas: “lisas pra cacete”. E com peso nas mãos, vão imaginando aonde chegariam.
     Via Domenico Cucchiarri com Mac Mahon - Ristorante Pizzeria Melabianca – algo como maça branca. E o futuro era negro: aqui o carrinho, apelidado de Manoel, trabalhava arduamente atravessando o hall, carregado com cinco caixas ploses, ou quatro san pellegro, ou algo assim. Nosso humor metabólico revertido em atividade, impelido pelo nosso espírito, é como uma grande sinfonia, sempre incompleta. A ascensão começa nesses dias com um moderatto leve, entrava num certo presto non tanto, por fadiga e obrigação externa, então assumia uma aceitação ao fato - não escaparas da masmorra certa -, e em andante non molto atingia a clave, e chegava à euforia dum allegro tantissimo; rápido como o abrir duma porta de trás dum carreto lotado. Eram 10:33 e Pansa, pós aquecimento da ida à américa, estava nesse estado estonteante da euforia. Enchera o Manoel e disse-lhe – “Da-me aqui que levo essa joça logo” -. Borbaci foi todo confiante que conseguia descê-lo na escadaria, sendo que Mestri foi apoiando na frente “vai de leve, vai de leve aê” e num deslize o “bicho” todo pesado desceu escada abaixo e somente pode ver o amigo respirando e saindo devagar detrás das caixas, espremido entre a parede, as caixas d´água, uma toca caída na testa, e a haste do manoel roçando-lhe as canelas – “Oh, não faz isso não!” -, enquanto ele ria-se todo lá em cima, Borbaci.
     Não seria de todo injusto instruir-vos que: caso sigam com tamanha seriedade, dando legitimidade aos nomes emprestados a esses blocos de terra, com o mesmo afinco que o escritor espera que sigam, prendendo-se nos adereços literários utilizados nessas frases, não seria desnecessário e menos cortês avisar-vos, e a mim, como curioso, se um dia pretender-mos nós fazê-lo; em realidade esse caminho de “compor S tela”, através duma fonte interminável de números que liquefazem lhos como nuvem em céu de capital, que em local de um restaurante encontrar-nos-ia com um bloco de terra ou um nada qualquer. Extasiados feito bobos pelas ruas milaneses, olhando para uma lavanderia no local que se esperava um café, ou pizza. Escolheram-se os caminhos como nomes de memórias, lembradas e descritas como tais na cabeça avoada do sr. Pansa, assim o foi.
     Assim retornemos aceitando como efeito necessário e sagaz essa liberdade nos concedida pela imagem criada letra após letra: o abstrato; o liso; e o feito. Mesmo que surja duma esperada ida á Grécia, depararmo-nos com ilhas de menos deleite e nem por isso, piores cafés e pratos. Dona Armena- Monte Grappa – cantina Cibi Cotto, ou comida quente, como se escutaria Mestri traduzir para um desavisado Pansa, ou a nós. Cata garrafa tira garrafas. E com direito ao cafezinho – “muito forte e ótimo alias”-, corto, à italiana, de brinde. O marido da dona Armênia estudou alquimia e cozinhava em panelas de prata, sendo que nesse “buraco”, simpático e bem apessoado, habitava um mago não muito largo, de bom tino para o comércio, sendo que um almoço não saia por menos de cinqüenta euro; o jantar chegava a cem. Deveria ser bom o gosto, destarte a cortesia não passava do café e até combinaram que viriam um dia experimentar a cozinha, o que nunca foi feito.
     Havia uma entrega que era feita em outra cidade vizinha, Linate. Essas eram as famosas travessias de mares largos; as viagens para Linate, até o ilustre Hotel golfe. Lugar de finèsse e beleza, arredores onde nossos rudes trabalhadores adoravam pisar nos gramados bem feitos, como tapete, do campo, próximos ao bucco onze, desconcentrando alguma tacada de algum descabido em tarde ainda clara. Então saindo, ao ver Bobaci Pansa divagar com as tartarugas no lago, e tendo Turci Mestri o açoitado a pouco para que subisse logo na carruagem enlatada amarela, ele foi irônico; ríspido e rude – “Se quiser ficaremos a tarde toda aqui” – e concluiu incisivo, espontâneo e com maestria: “até você enxergar o que as tartarugas vêem”. Foi o limite, Borbaci Pansa montou e sobrevoaram da volta ao som das valquirias radiofônicas.
     Tinham passe livre também no hospital do exército Italiano, da base milanese. “Uma enorme propriedade onde éramos recebidos pela bonita e simpática atendente da cantina militar”, ela também militar, e seguindo sua própria disciplina rígida, nota única ecoada no timbre menta Borbacesco, lembrou-se ainda de molhar os pés na grama úmida da chuva recente, abraçando a árvore de entrada, enquanto Turci Mestri flertava com a rapariga, tentando impedir que ela o visse, por sobre seu busto, a cena ridícula propositadamente empenhada por Pansa, na bucólica armada somente em seu mundo. “Você era ridículo e era de mérito se ela assim o soubesse logo de cara”. Concluíram naquilo, admitindo ambos estarem em estratégia feita; armando-se dos pretensos meios existentes para descarregar a energia corporal dum dia árduo de serviço: abraçar uma flor.
     O estádio Giuseppe Meazza,- nome do jogador e ídolo que foi capaz de unir as duas torcidas combatentes – para nomear a magnífica estrutura inaugurado em 1926, erguido sobre e para uma estrutura anelar exuberante, brilhava-lhes na vista quando circulavam nas redondezas do San Siro, para servir algum médico arrogante seu drink da tarde: água gasata. Apesar de não serem muito de jogo de futebol, nossos guerreiros entregadores saberiam admitir, se caso fossem indagados, diriam certo que era de uma beleza arrebatadora, visto de longe esse monumental estádio. Lembra-lhe os enormes pilares anelados em espirais gigantescas, as torres de sustento anelar, escadaria e prováveis elevadores para o campo, a arena de combates avassaladores dos vermelhos e dos azuis, Milan versos Internazionale ou na intimidade Inter.
     Noutra entrega dessa ilustre vita, estavam já prontos para sair e Turci quis confudir Borbaci, que estava atento. Foi cobrando-lhe: “E onde está o retorno” - ou algo assim, pedindo-lhe o que deveria trazer lá de dentro, ao que respondeu – “Você já pegou com o porteiro enquanto estava lá” – e disse a si mesmo – Sei gênio! – e o amigo rindo bateu numa dona na rua ao engatar marcha ré. Ai o dia foi todo azedo, tornou-se negro mesmo, com frases do tipo “vê se pode, carregar pedra o dia inteiro e ainda acontece um troço desses”, do tamanho estorvo o mesmo se diria quando tomavam alguma multa, papéis que se juntavam em tantos outros deixados em espera, sobre a cômoda.
     Por cima viriam diversas ruas que talvez devessem ser revisitadas, narradas com destreza ao milagre do fato de lá estarem. Se não o foram, ainda o serão: palco numa outra peça fantástica. Onde a veloz infantaria líquida, ao som do portal da vida, seguiria e adentraria o palco mostrando-vos pelos arredores da Pinacoteca di Brera, cruzando pelas fachadas do bizarro ao estrondo, do gótico ao romanesco, sendo que poder-se-ia terem sabido a programação semanal do teatro allla Scala, seguindo para belíssima allá frontal da Università Statale – aqui batia em Pansa alguma reminiscências de estudos embasados não feitos - Visconti di Modroni, F. Sforza. Piazza S. Babila. Era fantástico. Ao que se ouvia de repente do volante,

   - Muoviteeee! a vá cagare! – direcionados a algum desavisado emperrando o caminho.

     Enquanto sonhava-se no banco do passageiro, fiélissimo, nem tanto ao trabalho, mas a espécie, dos ajudantes ilustres e desajeitados, se não em esforço físico, ao menos, veloz ao estremo no raciocínio.

     Arena Cívica Giani Brera – aqui leões não comeram gente, prisioneiros e escravos, ao que se sabe – na Della Moscova. Saindo rumo ao Parco Sempione girando a Foro Buonaparte do Sforzesco de torre a torre, local de maravilhas carnais dessa terra trajadas em perfume ileso de tez fresca sabor pêra, fêmeas sentadas e desfilando em piqueniques de sábado, entre vinhos e marijuana, ópio, ou algo mais – aqui leões não comeram-ti: nas roupas leves de primavera – ao que se sabe. Depois o Museo di Storia Naturale, no bellissimo Giardini Pubblici Indro Montanelli e suas estátuas fabulosas, - viveiro no subsolo de ratos do tamanho de gatos – ratos raposas, local de passeio com o Leandro, filho III – “non deixa ele ver os bonecos que vai logo querer” – e corriam com o moleque arrastado; fugindo dos feirantes e suas bexigas hélio voadoras na Corso Venezia, saindo de cara na Galleria d`arte Moderna.
     - Narrar Restaurante na estonteante Galleria Vittorio Emanuele II -.
     Esta marcação, expressão lisa dum planejamento pré-escrito, indica-nos que é realmente belíssimo e, importante ao fato, se alguém o quiser e tiver a oportunidade de sentar-se para ordenar algo num desses postos, abaixo das arcadas de vitrais, envoltos nessa obra majestosa ao ar livre: Galleria Vittorio Emanuelle II. A galeria do Duomo, ou ao lado deste, - algo assim não tem dono, mesmo que fosse o sr. Duomo - , ligando-o à alla Scala, um anjo cúpido de vitral, é algo de quê inefável, e levavam-se dignas broncas, de Turci e dos andantes, por ficar ali, somente girando e olhando teus adornos num céu azul de fundo, enquanto não existiam mais furgões de cores mistas e amassados extras, mulheres estonteantes e fúteis, respiração ofegante, ansiedade ou algo assim, mas somente ti: Emanuelle e seus indizíveis adereços ao fundo da alma. – vai andar ou ficará ai? – Deixe-me aqui senhor, o resto de meus lúgubres e inspiradores tempos, neste templo de todos, já que não o poderia guardar-te em uma caixa, sublime de embrulho e ti presentear á sombra dos teus arcos, àlguma rapariga com o teu nome: Emanuele, quem sabe? Ao que ouvia dos anjos, tão pouco com toucas gastas:

   - Guarda o Manoel e vamos nessa! – si.

     Assim o foi o sonho e a realidade de tua beleza aos olhos. Do outro lado o mármore branco.

     Perde-se a conta das mulheres maravilhosas sobre lojas ao fundo que desfilam nas ruas de Milão. O incrível é que elas, por um ar que lhos têm advindo numa beleza de realidade, obtusa e esculpidas em gens divinos com maestria e música, engenhosas em serem vistas, o sabem-se desfilando e de certo modo respeitam o olhar lhes sugerido, não dos milhares com câmeras de fotógrafos, mas dum simples entregador suado e honesto, claramente se o mesmo souber se impor como algo além de alguma frase descabida, como substituir um direto “sei putana” deferimento predileto de Turci ao que lhe intimidava a beleza, tomando-a por algum “Sei bella!” sem malicia atirada; atrevida e indiscreta, - qual feito um anjo de Botticelli, sei distante a mim, no que dista essa moldura esquisita que me levas, amarela e destruída, mas se me deres a confiança, como dou-lhe meu sonho, dele poderia entrar e non mais sair, com tuas sacolas mili, sapatos altos, estilo único, em conversas de fragrâncias novas, situações de arabesco da realidade nobre, preenchidos com cultura sofisticada, de que alegrar-te-ia a tez dulce, aquela que possui de manhã: a qual somente julgava existir numa revista da qual não leio. Doce indo-te para cabana. Um sujo com classe eu o seria. E você, neste quadro.
     Aqui uma pausa curta para o salão do automóvel á céu aberto, breve porque não é minha especialidade: Lamborghini preta estacionando em frente de vos é um show a parte, aquilo se desmonta em compartimento e explode em fogo até que se pare por completo. E outras Ferraris, vermelhas, pretas, amarelas – em que Mestri quase cola o pára-choque, sobre as ruas milaneses – mais aos montes! Que até acostumar-me ia com os roncos dos motores como se acostuma às sinfônicas. São dois casos citados enquanto eram muito outros, já passando no retrovisor, ao lado, e a frente. Incrível que nunca ao volante ou no acento companhia, - já que sois digno -, mas sem carruagem de luxo, com os pés no chão e cabeça nos astros, do céu: os da terra estão acelerando enquanto diverte-se com o indelével. “Dio, nel cielo hai qualcuna passibilità?” - Caso non, deixa-me aqui na penitencia descalça. -.
     Parada para o almoço das bolinhas em frente à Estazione Centrale. McDonalds, quatro hambúrguers e um tè pesca senza ghiacio para cada um dos dignos. 0,50 euro de cents cada hamburguer e 2, e algo o tea. A centrale foi palco de um vídeo ainda que nada muito bem terminado, por Borbaci Pansa. È fenomenal, no que se diria recepção à altura, e que altura de mármore, de quem chega pelos trilhos. Descida constante de estrangeiros do primo e do terceiro mundo, esses segundos, os desavisados á procura de emprego numa Europa estagnada, geralmente pediam informação em inglês, idioma universal dos ciganos: duro de entender. “Isso, isso, siga em frente daqui e será mais um de nós”. “Deus te abençoe irmão”. - Até-.

     Aqui vamos chegando às deixas finais dessa jornada, sendo 14: 22 e rumo à Via Larga, com via Pallazzo Reale, restaurante das mili uma garrafas amarradas num plástico pegajoso, “bar universidade”, cujo carrinho não descia a escadaria. Quando Pansa ouviu o nome pensou, logo seria um lugar amistoso, cheio de ragacine italiane, universidade e tal, mas foi só. O negócio lá era rasgo forte. Salvavam-lhe a vista do Duomo, frente ao Pallazzo Reale, já que a entrega somente seria feita depois das 16:00, pedido que parecia-lhe incompreensível seguir à risca, destarte a entrega ser feita nos fundos do restaurante, começara daí a revolta.

     Aqui restamo-nos sobre a divisa; o corte da narrativa, um veio no delta da alma de alguém. Borbaci Pansa impaciente preparou-se para sair em direção à loja da Dona Luisa e passando pela Praça do Duomo, ao escutar os ruídos de uma enorme escultura da semana do design, uma aranha torta, rezando entre a monumental catedral estilo gótica e branca e o palazzo, notou dali que seria um caminho sem volta.
     Entrando Via Torino e saindo a esquerda na S. Maurilio no que era uma primeira reunião com a Senhora Cevese. Os dias de carregador se acabavam, bem como as correntes que trazem o escritório para uma mente sem limites teriam inicio. Não o sabia.
     Mas isso é conto de que se diga num ultimo e derradeiro capítulo, lho aguardemos, como o paciente monge que caminha na belíssima via Dante Alighierre, passando pelo Pallazo Della Ragione.
     Razão que se deve ter para cortar da emoção; os excessos que nos estimulam compor por linhas.

     Não disse ao certo, caso não descubra o verdadeiro nome das esquinas, ou pensá-lo assim de força literária, mas devo fechar com uma estátua, nem tanto em lugar de nobreza escolhida e ganha pela mesma, contanto de uma força extrema de imagem para ambos: o homem carregando lâmpadas nas costas, “a melhor de todas!” O l`uomo della luce. Sempre será o anjo, para mim, dos que trabalham e estudam, - pois devemos carregar o peso da realidade e do inefável; o indelével sobre as costas, como este bravo o faz, na Vivaio com a Monforte. E dito e encerrado.




flickr @Mario Ghezzi: l'Uomo della luce - opera di Bernardì Roig
2010 3 19 Milano





IV





De como as vozes se alinham e tendem à não calar-se jamais.






     Era final de abril na Itália.

     A reunião estava marcada às cinco horas nel pomeriggio.
     Ao ouvir o toque no interfone, procurava com o dedo indicador pelo nome desejado, sobrepondo-o em uma lista com doze sobrenomes dos demais moradores, ao lado de botões marrons arredondados, - para cada um dos números uma letra inicial-, no quadro da parede externa da Maurilio e, parado em frente ao mesmo quadro; a tela abrindo-se na história. Borbaci Pansa aguardava com certa ansiedade, tendo á pouco aberto o caminho, na viela estreita da via San Maurilio, encolhendo-se entre a travessa apertada e o muro ao lado da vitrine de bolsas, permitindo a passagem duma máquina da scuderia do cavalinho, sem trompetes nem nada mais, somente o motriz do vento vermelho. Então ouviu a sra. Cevese pedir, pelo interfone, educadamente se ele poderia retornar às 18:00. Borbaci disse-lhe que não haveria problema em regressar daqui un`ora. Talvez dissesse: “não posso” - e, assim tivesse tornado o seu futuro diferente, mas não o sabia e dali decidiu aceitar, sem mesmo compreender do motivo.
     Dirigiu-se à Fnac, em frente dali, na Via Torino, andando reto mesmo à Via San Maurilio, enquanto decidia se passaria o tempo lendo capas de lançamentos de livros. Tomou-se rápido com as capas e ouviu alguns áudios de blues na seção de música. No andar terceiro, o da informática e de tecnologia, acontecia alguma palestra explicativa do sistema operacional do Mac e Pansa vislumbrou: entre alguns meses um daqueles notes poderia ser o seu. Saindo e seguindo ainda mais um pouco em frente, tornando à direita e sempre reto, sentou-se nas escadarias da lustrosa Chiesa di Sant`Alessandro in Zebedia. Ouvira conversas próximas em círculos de gente e, em cinco minutos, poderia fazer, como de costume, algo como uma reza desencontrada, contanto sincera em sentimento no pedido, - como se os pensamentos orassem os sussurros de apoio em melodia àlguma prece -. Não escutando muito além da conversa alheia da gente di accanto, decidiu ser o momento de entregar-se àquela entrevista.
     Chegara cinco minutos adiantado para a hora prevista, cinco pras dezoito. Entrava numa espécie de reunião informal, naquilo que seria uma entrevista de emprego, informal como lhe foram os primeiros encontros com Luisa, enquanto ainda carregando a entrega d´água dela, elogiava alguma pintura que descia do teto ao chão nos grandes painéis de texturas diversas. Depois enviara lha um currículo acompanhado por uma covering letter –“está muito bem escrita”- responderia Luisa por e-mail. Agora, falava-lhe pessoalmente Borbaci Pansa sobre os seus estudos realizados até ali, espalhando meia dúzia de orgulhosos diplomas pela mesa, narrou sua desalinhada história profissional, contou-lhe sua situação de documentos e visto estrangeiro naquilo que lhe acontecera na Irlanda, demonstrou uma sincera pretensão de continuar estudando lá, na ilha verde, para que terminasse o intercâmbio e, depois sobre a Itália, -que abraçara em água e o abraçara em arte -, de certo modo, enxergava de instante uma pretensão para estudar o italiano, aprender a cultura e o idioma, enquanto trabalhasse ali, e mudar-se-ia para um local seu: de início um quarto num apartamento conjugado, destinado aos estudantes, às vezes, aos trabalhadores também. Ela ouvira-o e parecia entretida pelo discurso.
     Pansa saira de lá contente. Andava em meio ao transito de turistas num misto de rush comercial e deslumbre pelas vias amareladas com adorno azul do céu milanês de abril. Cruzara a abóbada da Chiesa di San Sebastiano, ainda pensando na conversa recente. Acertavam que receberia setecentos euro, por meio período de serviço, mensais. Luisa teria proposto mil, mas esquecera-se que seria esse o pagamento para o horário integral. Concordaram que Borbaci tentaria acertar a situação dele com a imigração italiana, devendo para isso conseguir o almejado permisso de soggiorno, conseguindo o direito para que estudasse, podendo trabalhar por meio período, “tutto legalizado” – ao menos era assim a lei vigente na Irlanda e na Inglaterra -. Assim ficava em acordo um teste de dois meses na loja Cevese, - “ainda insiste em chamar meu negócio de companhia, somos pequenos” – dizia-lhe dona Luisa. Era o ambiente onde compareceria das duas às seis da tarde, às vezes ficaria até mais da tarde da noite, no que estava muito justo e bem pago. Somente não estavam bem definidas suas funções, criaram um nome ao que faria: uma espécie de assistente de atendimento comercial, mas que lho mais desejaria!: uma oportunidade para aprender; um trabalho limpo com salário certo; “Il angelo dell`Italia avveva un`altro nome, si chiamava lo stesso dello segno delle borse, il label: Luisa Cevese.”.
     Parecia-lhe improvável a realidade: havia de certo modo atingido o objetivo, mesmo que os caminhos e os paises houvessem mudado, agora poderia planejar uma morada e trabalho na Europa. Milão – Itália -, contanto nos pesares do ar que caminhava era um tanto controverso nos sentidos advindos e causados daquilo. Em realidade não presenciava muito do vislumbre, o mesmo sucesso lhe passara quando foi somente uma idealização, o emprego, o salário: de repente tornar-se independente. De momento, quando apreciava em mãos, no pressagio doce do adquirido por mérito, a oportunidade real lhe parecia fugidia e um tanto falsa, como se não atingisse todo ele numa alma de planos; como em idéia o fora visto: revisto e tingido na tela corpus. Sentira, ao caminhar pela Torino em direção à Piazza Duomo, e entrando na Dante Alighieri, ornados por extremos edifícios antigos, percebia que à única pessoa com quem pudesse compartilhar aquele acontecimento, o novo emprego; o vislumbre duma nova Itália e Europa, uma página de seu livro vitalis, o único que abraçaria em comemoração seria o amigo Turci, o Mestri e, talvez, não estivesse o colega e nobre das entregas, como ele não o estava agora, muito satisfeito com a idéia. Ou estariam, em realidade, preocupados com isso tudo. Assim pensava até o metrô.
     Descendo na Pasteur, sem seguir direto ao apartamento, ligara antes da cabine dos árabes no celular de sua mãe e, contava-lhe entusiasmado haver arrumado um novo emprego e que começaria estudar de novo. Ela lhe disse ali e bem rápido que estava muito feliz por ele, agraciava-lhe e dizia-lhe que realmente era ótimo por onde ele estava, no estrangeiro, haverem percebido sua capacidade e esforço. Ele ansiava em dizer-lhe mais detalhes, contanto ainda não o sabia ao certo e tomando a conversa um tom angustiante de entusiasmo irreal, eles despediram-se na linha e foi rápido, após acertar as monetas da chamada internacional, ao apartamento. Logo numa contradita a conversa na mesa da Pietro Crespi acercava-se por um tom meio de disputa, desconfiança na parte de Borba em contar as pretensões com o novo trabalho, quanto receberia por meio período, como seria o convívio, entre os caminhos novos que se formavam para ambos. Turci Mestri o aconselhara que talvez fosse melhor entrar no trabalho, começar com o trabalho, ver como era a rotina, e somente depois retomar e investir nos estudos. Mas Borbaci via-se entusiasmado com a possibilidade; a realidade de mostrar, para si mesmo e para o Turci, que era um caminho certo e de melhor futuro, -como o defendera em tantas conversas anteriores -, estudar e trabalhar. Assim o fez logo como o vinha fazendo desde a Irlanda.
     O colégio Ente Lombardo para estudos da língua e cultura italiana fica na Via Stradivari. No começo do Corso Buenos Aires, para quem vem ou desce nos trilhos do Loreto. Marcou a prova de conhecimento geral, para intuito de saber qual o livello do aluno, para a manhã do dia seguinte, sexta-feira. Alcançara uma média de certo surpreendente para o sr. Sandro Testa, coordenador das turmas e administrador dos cursos – “Sei bravo e poderá cursar uma turma avançada!” -. “Ok” Começava então na segunda-feira, lunedì e adiantou-lhe metade da quantia de dois meses de estudo, 450 euro. Para um mês o valor era maior, fato que viria ser discutido, - após os deltas do blues, rio Panses, terem seguido ao Atlântico -, numa travessia brusca de tormentas fortes.
     Nessa mesma tarde, ao retornar das provas e encontrando Mestri na mesa no apartamento, ouvira um tanto aflito, um misto de susto com contentamento.

- Sabe o que aconteceu hoje – e continuou com entusiasmo – Acabou pra mim a entrega: devolvi o furgão.

     Depois tomou a sala um inominável silêncio e tocou o telefone de Turci algumas vezes até que atendeu, meio dizendo aos berros – “Ma non vo Senhore, sono andato via” – ou algo como, e percebeu-se tratar com alguém do serviço – “Cosa voi che io faccia” – Não trabalhava mais para Bredas e o queriam para um último carregamento ou para que descarregasse o furgão ou algo assim à que Mestri relutante negou em voz irritada e desligou a chamada – “a va ffanculo”, descarregar o quê. Depois disso as coisas tornavam-se um tanto turvas e foi de graça divina, em plena Itália estagnada, Mestri com sua sabedoria das ruas, viria arrumar em três dias dali, - escuros mesmos, escuro feito sujeira de neve na calçada -, um trabalho de garçom num restaurante nos finais de semana.

     No primeiro dia de trabalho com dona Luisa Cevese, pouco falara com a mesma, sendo que ela fazia sala para alguma visita, uma cliente da Inglaterra, e Borbaci não soube se seria apropriado aproximar-se ou interrompê-las, assim ficava na sala do escritório, nos fundos do médio armazém da loja estudando os mostruários, no ambiente do negócio que lhe era devido. Teve lembranças do primeiro dia que entrou lá, carregando as caixas d´àgua. Foi passando por grandes telas de folhas finas de madeira e tecidos penduradas pelos cômodos, passavam esbarrando neles e depois descobririam serem as matérias primas para os enfeites das bolsas, os mesmos seriam recortados nas medidas certas, de colo ou de viagem, às vezes bem pequeninas para moedas, e adornariam em desenhos diversos de material reutilizado as peças. Provavelmente Luisa ficou impressionada com o rapaz que falava com entusiasmo, em inglês, de suas aventuranças pela Europa. Foram dois encontros desse gênero até que ela mencionasse interesse em chamar-lhe para um teste.
     Havia a Cátia, uma simpática mulher nos quarenta anos de idade, e eles já se conheciam das entregas. Ela ficava em frente, na loja em si, atendendo aos clientes; mantendo as vitrines devidamente arrumadas por ela mesma, ou por dona Luisa, com sincero carinho, zelosas das amostras para a San Maurilio: dezenas de modelos das bolsas penduradas em ganchos, cabides de galhos de madeira. Ainda no armazém, encontrava em alguns dias o novo companheiro de trabalho. Vindo da Venezuela, ele trabalhava na fábrica em Como – a indústria de produção daquelas telas que impressionaram Borba situava-se no Lago di Como - e também dois dias da semana veria a camareira vinda da Moldávia, esta lhe aconselhara como agir no trabalho, com dona Luisa, mudando de atitude no serviço quando ela conversasse com ele ou estivesse pó perto. Ela, orgulhosa, dizia-lhe mostrando a foto da filha “tudo que fazemos, eu e meu marido é por ela” e contava-lhe também sobre os outros trabalhos, atendendo e arrumando nas demais casas de nobres milaneses, falava sobre as moças, prováveis filhas de seus ricos patrões “sono tutte putane!, oggi queste ragazze” e completava “ non vogliono fazere niente”
     Mesmo com todo apoio e mantendo-se muito carismático com todos, Borbaci não se saia bem na rotina e nos atendimentos aos clientes. Pouco se acostumara ainda ao novo ambiente; a loja de bolsas e malas, e entendia muito raso de como comportar-se ou ajudar. Em si eram poucos os e-mails para responder, atendera alguns telefonemas e tentara comunicar-se, tanto em Inglês como em Italiano, mas toda aquela nova atmosfera parecia-lhe agora extremamente sufocante e difícil, quando na verdade era tão simples e menos fastidiosa, comparada ao trabalho duro com as águas e entregas todas. Passara do atendimento para diversas funções gerais, mas se apercebera do que logo viria e aquilo lhe causou tamanha angústia que não saia-se, nem bem nos estudos, quanto nas palavras. Um dia, á pedido de Luisa, pegou os trilhos do bonde seguindo para o Naviglio Grande, passando pelo Corso da P.ta Ticinese, Viale Gabriele D`Annunzio, desviando-se do caminho para P.ta Genova, até alcançar um grande armazém onde deveria comprar uma espécie de embalagem, a qual comprara em tamanho errado, tendo que retornar o caminho. Foi um dos raros momentos que saíra da loja, e lembrou-se das andanças alucinantes com Turci; de como agora parecia-lhe a despedida da Itália: de tudo aquilo que havia vivido.
     Assim foi sendo até o dia em que conversaram, ele e Dona Cevese, após uma breve discussão sobre a resposta de um e-mail, que não deveria ter sido escrito, ou que tivera sido enviado sem o aval dela, e Borbaci, sabendo que ela não o aceitaria para além dos dois meses mesmo, - pois além de estar demonstrando um desempenho confuso, ineficiente no que ela quisesse, havia o problema com a imigração: descobriu-se que as leis da Itália eram diferentes e não havia como regularizar, restando no país, sua situação ilegal-, assim disse-lhe, para Luisa, que aquilo estava bom para ele, agradecendo a oportunidade dada e sendo muito confuso nas frases e disse-lhe que tudo bem fosse somente aquele período de teste, mas estava muito preocupado em realidade.
     Comentou com Turci Mestri aquilo tudo que passava no trabalho, entre as novas apostilas da língua italiana, estendidos entre o lápis borracha e o dicionário, sobre a mesa que seria preparada para a janta. Contanto sabia não haver igualmente mais volta para viver no apartamento, além daquele mês, pois o ritmo deles já era outro, - diverso um do outro em tempo e espaço-, e percebeu-se, além disso, fora o entrave financeiro que poderia antever Mestri, se o deixasse ficar por ajuda ou compaixão, pudesse acometer-lhe presenciar, Borbaci, um fato desgostoso que o mesmo não o quisesse por lá, assistindo: talvez o próprio rumo, o tanto sombrio da Itália, houvesse chegado para Mestri. Ele estava com problemas com os donos do furgão, e o suposto Marcelo retornaria do Brasil para que resolvessem de vez os entraves dos antigos negócios. E as contas somavam-se pelas paredes. Não era, e nunca seria, cena que se quisesse compartilhar, por orgulho ou dor.

     Pansa adquiriu nesse tempo um maior entendimento com dona Carmem, a dona da quitanda; mercadinho abaixo do apartamento. Notava então o porquê Turci Mestri talvez o fosse tão apegado nela, restando paciente por longas e demoradas conversas os dois, naquilo que, para Borba, passavam-se como desperdício de tempo enquanto o mesmo subia apressado para ler algo ou ver os filmes com legenda italiana. Quanto se está só é que se percebe o quão é necessário encontrar conselhos e se sentir-se acolhido, até mesmo por quem parecesse chefe de uma máfia obscura: a família Carmem. Foi com carinho que ela preparou-lhe lanches lhos oferecido ali mesmo, entre clientes e caixas amontoadas, entre discussões com um marido; companheiro relapso, em discussões com clientes desonestos, na conversa com a filha que retornara recentemente da Austrália. Foi nesse ambiente, com essa gente toda, que Borbaci colocou em prática os diálogos; treinara a língua italiana aprendida no Ente Lombardo, desenvolvendo-se por cada frase dessas; e na vivência, agora na pele, da realidade da Pietro Crespi, dos telefonemas atendidos no trabalho com Luisa, e dos muitos estrangeiros que passavam pela “casa Carmem” e pela janela cotidiana de caminhadas históricas cruzando Milano do Duomo até ali por seus incansáveis e curiosos pés.

     A conversa final com dona Luisa Cevese já era esperada. Quando chegou certo dia, - o exato dia em que completara um mês em pretendidos trabalhos prestados-, ela lhe chamou para a sala de espera e disse-lhe que ele não precisava mais vir, e que seria de muito gosto se ele conseguisse um emprego nesse mês, em advir, que eles haviam combinado, que ela ficaria com o número dele, ligaria caso houvesse necessidade e, se ele não arrumasse nesse entretempo nada para fazer, pagaria-lhe o combinado pelos dois meses. Saia dali completamente sem chão, mesmo sabendo que isso aconteceria, indo para o novo quarto, perdera-se na estação amarela de metrô, mesmo sabendo o caminho, pensando no curso irlandês que ele julgara trancado mais que soubera agora não tinha direito de voltar e concluir. Lembrava-lhe alguns dias desses, atrás, houve um incidente que interditou a linha vermelha do metrô: alguém havia jogado-se nos trilhos. Preferiu esquecer-se disso tudo e tentava fazê-lo. Ligou de uma outra cabine árabe para Mestri. De lá esse já conversava com um suposto Marcelo do qual, não pode argumentar, - nem haveria necessidade de-, mas pareceu-lhe certo e claro que nunca ali existiu esse cara.

     De como fôra a vivência de uma semana no novo bairro latino, - em pleno coração do comércio italiano, só se fala espanhol ou castelhano-, é do quê se trataria abaixo. Preparava-se para descida na Piazzale Carlo Maciachini, seguindo pela via Carlo Imbonati, à esquerda na Via Giuseppe Cesare Abba. Uma cortina de fios de plástico coloridos, uma pensão; algumas vidas. Turci Mestri o ajudara no primeiro dia com as malas. Vira-o em completo e absorto silêncio, dentro d`alguma forte tensão emocional e havia um quê de sadismo ao olhar o quartinho, o banheiro e a pensão toda em que Borba moraria. Concordaram que era limpo e seguro, mas que não devesse ficar por lá por muito tempo – “você tem o dinheiro, aliás, não deixe no quarto todo ele!, vá para Londres!”- Abraçaram-se e combinaram de se falar.

     Nessa semana aconteceram coisas tais: o último pagamento adiantado por dona Luisa Cevese, encontrando-o no lugar marcado por ela, como se fosse algum bandido, numa estação de trens, na Piazza Cadorna e, não que o fosse de baixa índole - era um estrangeiro sem documento trabalhando-, para ela, esse “bandidismo” poderia trazer graves entraves e complicações com o estado. A janta com o filho, a mãe dele, e a namorada deste, todos do Peru, guardiãs do pensionato. Pagou-lhes uma pizza, pois a família havia lhe dado cerveja, alem de companhia num sábado à tarde. A despedida deixando os seus livros dentro da mochila antiga, - envelhecida no uso e de jeans gastos e rasgados pelo mesmo no viver-, na catedral ali dos arredores, no setor de doações, na via Livigno. A conversa com o italiano bancário que entendia de música. Os dias de verão que se estendiam até tarde, como parecia estender-lhe ao infinito aqueles últimos momentos, em que aproveitava, ao ler um artigo nos jornais costumeiros das manhãs de entrega, abarcar como se fosse uma enciclopédia do italiano, pois não o sabia quando, e se voltaria à ler aquele idioma, que nesse instante se esvaecia de sua vivência em letras turvas.

     Uma última santa ceia, porquanto não houvesse geladeira coletiva, havia uma azul, mas estava sempre fechada, no pensionato e nem nos quartos: “pomodorino” – pequenos tomates vermelhos que serão sempre lembrados nos lábios e sendo apresentados por uma moça suíça-, pães, e algum suco e, também qualquer doce: bolachas de chocolate. Pagara a pensão, era por dia 20 euro, o que saia ruim para quem tinha vivência de conhecer os valores de um aluguel normal, o apê do Mestri, por exemplo, eram como 480 euro mensais, por um lugar bem mais estruturado, mas a pensão atual, por comparação, era bem melhor e 10 euro mais baratos que um hostel, por exemplo, para quem estava de passagem.

     Ligou para uma final consulta, queria saber se iria para Londres. Os valores de Londres eram algo em: 320 pounds o quarto por um mês, mas o quê lhe interessava saber era sobre os empregos. Na opinião do “brasa”, amigo do amigo, que tinha cidadania portuguesa, lho aconselhou, talvez fosse melhor voltar em outro momento, dizendo que provável ele arrumasse algum emprego, mais num prazo seguro duns três à quatro meses na capital inglesa.

     Assim houve aquela ligação derradeira para casa, falando com o irmão e a mãe. Decidiu, caso não arrumasse, por mais um milagre dos anjos, europeus à italiana, que já estariam fartos e, momentos desses gastos todos os seus aureoles cabelos, retornaria. A compra da passagem de volta foi feita em dois dias. Descreveria assim a espera: as cores do sol nas árvores fora do escritório era uma nota a mais numa melodia complexa; sendo reto e enfim, fez-se a compra relutante. Ligou dali mesmo avisando que estaria retornando no sábado, era terça à tarde. Então ligou para o sr. Testa e disse-lhe que iria dali pagá-lo, o restante da quantia, sem desconto, para um curso de um mês, pois havia trancado o segundo mês numa conversa emocionada e dizendo-lhe que havia “comesso um errore” e “que agora não tinha mais o tal emprego”, e que se poderia pagar pelo mês os 450 adiantados, mas o certo e foi assim declarado, deveria pagar os 110 euro restantes para um mês de aula normais. O fez e emocionado ouviu do senhor: “é novo ainda garoto, tens muito que viver” e carinhoso disse-lhe ainda: “vá”. E apertaram suas mãos, chacoalhando mais que os simples braços.

     Percebe-se aqui neste ponto findo e melódico, tentando buscar por uma tônica que lhe encere na oitava superior, tanto dentro de Borbaci, como no enredo, às horas e meses para demarcação das frases, as pontuações rítmicas, não fariam mais sentido algum, o menor deles. E nem mesmo desvencilhar a voz que lhos conta da voz do singelo Borbaci Pansa.

     Nossa vida é como a de uma personagem, ainda em construção, em processo elaborado, que a cada ato vai-se transformando, e não é de erro literário algum notar, - nontanto de viver-, saber-mos que o que se era dali, não é, mesmo que o meio material seja o mesmo, a mesma pessoa.

     No que podemos concluir, “é que viver é fantástico!”, uma dádiva nos dada por um diretor de teatro, zeloso de nós mesmos, relapso em sua grandeza, que não nos aparece por completo, pois nós, ainda, numa rudeza arcaica nessa arte, não poderíamos compreendê-lo; suas marcações, e estamos no palco, e vivemos!, a platéia, às vezes, não nos percebe, mas interage conosco, muda-nos pro bem ou mal, mas o quê sabe-se é que: o dono dessa cena, torná-la incrível ou monótona, torná-la infinita ou banal, esse controle está todo e total dado ao ator principal dessa loucura; o palco que é viver: nós mesmos.

     Assim é como se disse da Itália, como se diria duma parte de cimento ou terra qualquer dessa peça. E o fechar das cortinas estar-me-ia ainda longe o suficiente; propenso ou obscuro o suficiente, para que o dia a dia torne cada minuto o complementar transformando de uma hora um planeta girando em torno de um astro maior, da onde se espera um mínimo de minuto de inspiração de vos, no final dessa linha: dum ato ao outro para a tua histórica jornada.

          Com todo o amor e a maturidade que posso ao momento,
          E de toda a atenção que ministra o sublime do inefável,
          Indelével; e desconhecido de mim à vos,

          Como se escrito no verso de um ticket de volta, num dos assentos
          Do virtuoso salão de espera, enquanto vista pros Alpes,
          No aeroporto de Malpensa:



          “Chi dice questo a l`Italia
           Chi dice che il samba non c`è gusto
           Qual era a cor daquele quarto
           Qual era mesmo a cor daquele quarto

           Chi a detto parto presto
           Ma bem sabia l`Italia
           Che o bom samba gosto tem!

           Ma bem sappia tutto mondo
           Che il buon samba gusto c`è

           Chi a detto parto presto
           Chi a mesmo detto parto presto”


“- e hj ele é usato procurando le stanze di chieta Alice. –.”.



                   May the 27th
                   Borbaci Pansa.




-

Escolhido por amenizar em fim.
hoje, 19 de fevereiro de 2011, 11:03:11
Acantiza

-


...



Alpes em perspectiva turva vistos dum carro em movimento 

 castelo ao centro e entrada do vale com riscos ao fundo

 postos de controle; fronteiras em diversas línguas: Suíça

 Aosta, Aoste, Gran San Bernardo, Monte Bianco








 Cogne: Funivie Gran Paradiso

 cômodos em luz com lua ao fundo



o reflexo de duas vidas

yo e o Paulin Mestriner, noutra voz: Borbaci e Turci




...