segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Wislawa Szymborska



Poemas de Wislawa Szymborska, traduzidos do inglês por Guto Cavalcanti e Josette Monzani.


Possibilidades
Prefiro filmes.
Prefiro gatos.
Prefiro os carvalhos ao longo de Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievsky.
Prefiro-me gostando de indivíduos
a mim mesma amando a humanidade.
Prefiro manter uma agulha e linha à mão, em caso de precisão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não suster
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro falar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as antigas bem alinhadas ilustrações.
Prefiro o absurdo de escrever poemas
ao absurdo de não escrever poemas.
Prefiro, quando o amor diz respeito, aniversários inespecíficos
que podem ser comemorados todos os dias.
Prefiro moralistas
que me prometem nada.
Prefiro bondade astuta ao tipo super confiante.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro conquistados a países conquistadores.
Prefiro ter algumas reservas.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas dos Grimms às primeiras páginas dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro cães com caudas descortadas.
Prefiro os olhos claros, uma vez que os meus são escuros.
Prefiro gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas coisas que também deixei não ditas.
Prefiro os zeros à solta
àqueles alinhados atrás de uma cifra.
Prefiro o tempo de insetos ao tempo de estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo e quando.
Eu prefiro manter em mente a possibilidade
de que a existência tem sua própria razão de ser.






Utopia

Ilha onde tudo se torna claro.

Chão sólido debaixo dos pés.                                                                                            

As únicas estradas, aquelas que oferecem acesso.

Arbustos curvam-se sob o peso das provas.

A Árvore das Suposições Válidas cresce aqui
com ramos desembaraçados desde tempos imemoriais.

A Árvore do Entendimento, deslumbrantemente reta e simples,
brota pela primavera chamada Agora Eu Entendi. 

Quanto mais espessos os bosques, mais vasta a vista:
o Vale dos Obviamente.

Se algumas dúvidas surgem, o vento as dissipa instantaneamente.

Ecos agitam-se sem citar     
e ansiosamente explicam os segredos dos mundos.

À direita, uma caverna, onde o Significado repousa.

À esquerda, o Lago das Convicções Profundas.
A verdade verte do profundo e move-se para superfície.

Inabaláveis torres da Confiança sobre o vale.
Seus picos oferecem uma excelente vista da Essência das Coisas.

Apesar de seus encantos, a ilha está desabitada,
e as pegadas fracas espalhadas em suas praias
apontam sem exceção para o mar.

Como se tudo o que você possa fazer aqui é deixar
e mergulhar, para nunca mais voltar, nas profundezas.

Na vida insondável.


As Três Palavras Mais Estranhas

Quando eu pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando eu pronuncio a palavra Silêncio,
Eu o destruo.

Quando eu pronuncio a palavra Nada,
Eu faço algo que nenhum não-ser pode reter.


O Prazer da Escrita

Por que a palavra corça surge em meio a esse bosque escrito?
Para bebericar água da primavera descrita
cuja superfície copiará seu focinho mole?
Por que ela levanta a cabeça; será que ouve alguma coisa?
Debruçada sobre quatro pernas finas emprestadas da verdade,
ela pica até as orelhas sob os meus dedos.
Silêncio - esta palavra também se agita por toda a página
e parte os ramos
que surgiram a partir da palavra "bosque".

De emboscada, definidas para atacar a página em branco,
estão palavras não muito boas,
garras de cláusulas tão subordinadas

que nunca irão deixá-la ir embora.

Cada gota de tinta contém um suprimento justo
de caçadores, equipados com olhos apertados por trás de suas vistas,
preparados para mergulhar a inclinada caneta a qualquer momento,
cercar a corça e lentamente apontar as suas armas.

Eles se esquecem de que o que está aqui não é vida.
Outras leis, preto no branco, valem.
O piscar de olhos vai demorar tanto quanto eu disser,
e, se eu quiser, será dividido em pequenas eternidades
cheias de balas, paradas em pleno voo.



Nada vai acontecer, a menos que eu diga.
Sem a minha bênção, nem uma folha cairá,
nem uma lâmina de grama irá se dobrar sob aquele pequeno casco.

Há então um mundo
onde eu governe absolutamente o destino?
Um tempo que eu ligue com cadeias de sinais?
Uma existência tornada interminável sob meu lance?
O prazer da escrita.
O poder da preservação.
Vingança de uma mão mortal.








quarta-feira, 10 de julho de 2013

Nevoeiro Lisérgico Sobre Polvo Voando





NEVOEIRO LISÉRGICO SOBRE POLVO VOANDO


COLEÇÃO ALICIA NO PAÍS DA LISERGIA







TENTÁCULO PRIMEIRO: NEVOEIRO SOBRE O POLVO VOANDO


por trás das nuvens brancas claras de transparência transpassadas por luzes contrastadas vindas das sacadas de um prédio azul branco laranja entre muitos outros edifícios que consumiam a visão de um universo embebido e perdido em tamanha névoa que consumia toda matéria em sobra só o céu em extremo escuro granulando todos os feixes das luxes nos postes nas esquinas silenciosas no abandono do breu lúgubre de borrão impressionista em sua propagação pelas finas gotas de água que nos ares dançavam sem serem atrapalhadas ao redor das fontes de luz iluminadas lutando com uma lua tímida em um espaço de céu adiante em laranja avermelhado quando o sol se consumia pela terra caindo por detrás de uma montanha de um vulcão verde mágico explodindo toda sua beleza em rochas fumegantes amarelas que cruzavam por todo o espaço em seus segredos por debaixo da concavidade da atmosfera do planeta que se mais tempos passados era um mistério de grandes discussões sobre suas causas e seus devidos efeitos agora banais na época realizada em seus avanços desenraizados deixando-nos maravilhados em nada sem explicações exatas de modo a não notar toda a beleza que congela o tempo na espera que paremos para entendê-la sendo só observando a magia andando por uma rua em uma certa noite nublada realidade banal de cabeças que não conseguem perceber na beleza vaga que somente na concentração pode-nos revelar voando por um céu que jamais existiria em uma dessas mentes sem brilho de segundos que se perdem no não parado para a beleza interior de cada coisa num momento de fantasia e cor e sem falar dos sons de imensidões obscuras que propagam de cada vinculo existencial como nas células dessa grande árvore com pétalas de lilás e violeta refulgentes até a morte evocada pelo branco nas bordas das suas folhas caídas empilhadas sobre um chão de asfalto áspero à visão romantizada que some ao ver de uma carcaça de um pássaro preto rajado por pontos mais que traços brancos que apodrece no chão florido.

O tempo não se faz somente nos ponteiros tão quanto na decomposição da matéria
O tempo é movimento e enquanto parado morro mas antes morto pois nem via árvore que gemia por todas suas entranhas violadas pelas rajadas de vento que a consumiam toda como um amante que despe sua ceia de belos seios.
O nevoeiro se abriu e nadando nele é que se viu passar o polvo.

Aquele homem novo e rasgado pelo tempo em que se perdeu seguia a passos rasos pela rua nebulosa em determinada madrugada de um dia qualquer até avistar a bela árvore que se despia toda para o outono enquanto um pássaro se decompunha em pó próximo à uma de suas raízes que cortavam o asfalto que se rachava em seu caminho.
Sentou aos seus pés e no céu viu surgir à coisa.
Viu os tentáculos primeiro.
Curvavam-se para frente e com beleza eram arremessados para trás de todo o corpo grandioso dando assim força ao molusco que se projetava por entre o oceano fantástico das nuvens brancas de fundo roxo pelo resto do céu ostentando sua cabeça enrugada e altiva por sobre o edifício do número duzentos e vinte um da rua Solar dos Moloks.
Suas garras dançavam sensualmente acariciando as nuvens ao seu redor.
Penetrava-as deixando atrás um buraco vazio.
Nevoeiro sobre o polvo que voava. Voava pelo céu de fumaça e se fazia polvo.
Via-se ao centro os olhos negros de esperteza do polvo.
Olhos da escuridão da memória do infinito universal dos céus que trespassou.
Pelo espaço passou capturando motivos para se fazer nadar sem mais uma gota de lenta escrita e pressa por sobre seus tentáculos de letras. Tentáculos capazes de sumir por diversos universos para compreender o infinito escuro que é o não conhecer.
Era isso que trazia aquele animal. Idéias agarradas sobre seus tentáculos.
Idéia de todo um tempo volúvel nos séculos que se foram.
O polvo congelou pequenos pedaços de tempo e os guardou para os universos seguintes.
E como eles vieram?
Em versos.

Foi então que o homem, ainda sentado abaixo daquela árvore vistosa acima do pássaro fedendo à carniça abatido em seu ninho por um chumbo fulminante deixando dois filhotes ainda com fome à espera dê quem lhes de abrigo, viu no céu o grandioso animal curvar-se rapidamente mergulhando através das nuvens para entrar pelo quintal de sua casa.
O homem correu e, passando a chave no portão de entrada, ainda viu o último dos tentáculos atravessar a fresta da janela escorrendo por sobre o cubículo de vidro, o viu entrar na sala seguindo por cima da mesa de jantar derrubando um lustre sobre o chão de madeira, o viu seguir pelo estreito corredor com duas lamparinas amarelas que mais pareciam velas, o viu entrar em seu humilde quarto e lá ficar parado no teto, flutuando.
O homem entrou assustado em seu quarto, olhou bem dentro dos olhos negros e molhados do animal enquanto seguia ao seu lado pretendendo ver seus tentáculos que flutuavam como uma onda propagando no ar e quando ia principiar a terminar a primeira estrofe do primeiro verso colado no bicho, o danado lhe soltou uma fumaça negra e espirrou direto para fora do quarto e do mundo para nunca mais voltar.
O homem ainda correu por entre a nuvem negra e chegando ao quintal viu o molusco subir para o universo por entre os galhos de uma árvore verde do jardim.
Sobrou-lhe somente a primeira e única estrofe do paraíso.

Se o vago negro ao partir
o vago ser não pôde sentir
o saber a que me fez liso
um exilado do paraíso.

(julho.2004)

O homem deixou-se cair em sonhos.
E neles vislumbrava o animal liso juncado por suas intempéries oníricas.

Libido dentro de uma lesma perene e inerte nubla quebrada vertendo sangue quando deseja gozar esperma explode em imagem da besta de um santo sacro venha ver-me compor pedia a prece apaga duma memória lúgubre remota fração do medo monta a ceia e cerra a seiva saliva quanto suor jogado na pele na luz clara vinda de alguma maturidade verte escura escova teus ossos abaixo dos lazeres frívolos do sexo enquanto deferia descerrava em um blues solitário solstício de sono agora lento agora movimento irrisório sonhos em cicatrizes azulados por antigos móveis azulejos cabeceira antiquada antes fossem livros velhos livres a visão da carniça vermes esvoaçava a partícula da coisa mole seus lábios ainda no lustre entrou o sonho numa liberdade e transcendia a vagina ao lado o medo da coisa negra e pastosa que voava ainda pouco seus tentáculos de molusco contanto ao mesmo tempo o alabastro o chamava caminhar na escuridão aquosa e abriu-se cor vinho rosa vermelha morte duma manhã ainda por vir esterco de outro espírito mente agitada queda num buraco negro sem fim o começo do sono morto

o sonho da noite não apagará os medos do antigo
o tempo não se faz somente na carne que seca a seiva ainda fresca
baba nas pernas inermes o gosto do passado. Morte e reencarne.

No meio do sonho o homem com seu sorriso tímido a racha mole via em sua frente lambo amanhece diz a frase bonita sobre ter ido vê-la não amanhece ambos somem para o infinito desconhecido sentados numa escada antiquada de azulejos podres e rimos da planta estranha aparece alguém atrás deles suas mãos as dela sumiram por entre esses cabelos que quase amanhece palavras sobre música árvores planos de vida coma a mexerica muito boa para sarar da cerveja colhida no mesmo terreno onde outra árvore grande parece nos abraçar erguendo-se por sobre nós com o fundo do céu de nuvens dispersas em pequenos quadrados de algodão vamos embora voando e ligando de madrugada para falar da lua e de um lanche grande na geladeira os vemos deitados no chão tenta chorar por estar tão perto e tão distante feliz ao lado contando coisas que talvez só ela saiba e que são tuas mais belas verdades dormir juntos um lustre com uma luz muito bonita pendurado um xale brilhante acorde e estão abraçados sem palavras ela diz que está gostoso com sua fala contida para dentro e o homem acaricia seu corpo carinhosamente ela se vira para seu lado e deve estar o olhando porque brinca com essa mão que abre os seus olhos e se beijam.

Libido de fraude de quem adormeceu e borrou-se todo nas pernas e a coisa negra ainda voa pelo aposento não amanhecido.
Uma linda manhã nebulosa começa surgir na lesma vê o brilho
Passou como a fumaça espessa que some por fora da janela parou o tempo e fez ficar real tudo que era imaginação. Gozo.
O homem recobra algum sentido ainda lúcido pelo molusco.

Rebusca no leito o diário do que fomos. Otário e sobre a cabeceira. O lê.
Uma manhã comum em Sanca. Entramos neles.
Alguma coisa corre por dentro do seu cérebro uma maratona rítmica de fluido poético somente um estudante transitando de um lado ao outro dessas orelhas acorde vendo a nuvem negra que nublava o único e importante poético mainframe e então abra o dia indo até a padaria comer um pãozinho na chapa e uma jarra de suco de laranja grande mesmo mas grande mesmo de deixar você satisfeito mas pecador
por querer mais mesmo tendo gostado do café da manhã ainda tem muita poeira nesse seu céu de nuvens de letras e luz da mais pura leveza do escrever então fume uma bucha
ao voltar para o quarto irá passear com a baleia essa cadela mas desista para ir ao cinema ainda não foi a partir de agora esse instante é só a vida porque a estamos vivendo enquanto termino de escrever espero que o seu dia seja muito discutível perante as leis do amor porque precisamos produzir

tudo que move o mundo são suas guerras e suas drogas.
O sonho não o livra da folia e da vontade. O homem sucumbe.







SEGUNDO TENTÁCULO.

E agora observe o formato estético que tem ao lado
bem ao lado do texto veja você as linhas não terminam no final
do papel porque não está formatado o padrão e elas formam um desenho
vejo algumas montanhas ondas do mar
um cara mau um pintor com bigodinho e tudo Ah ontem também viu a sua Alma
falamos disso naturalmente porque o homem já esperava acontecer vamos narrar tudo para que ele possa se lembrar daqui uns anos oitenta talvez
estava na rede do quarto que também tem um bar é um varal de textos que me lhe é como um polvo preso no teto
mas narra o quarto em outra vez o homem estava ouvindo o white álbum ou sgt. pepper`s lonely hearts club band ouve pixies, where is my mind uhuhuho e então cochila e quando está no êxtase que são os minutos do inicio do sonho que liberdade maravilhosa ela nos dá
assim quando volta vê vendo a tela do computador a bandida da sua alma Ela está pretendendo ser compositora e então estava lendo a música e.

já está se armando para enfrentar a sua própria alma quando ela começar a o forçar aprender música
Utilizando-se de toda a sua artimanha
Sua mente o massacre do inútil corpo materializado.
E agora vamos ao cinema.
-22/05/2004-
Acordamos.










TERCEIRO TENTÁCULO

E quando andou por sobre os versos?
Nos sonhos. Foi no ultimo dia que estava lá. Com a coisa negra. O homem caminhou até a entrada de uma corredeira criadouro de abelhas de repente estava andando por sobre as pedras nas quais leu o diário de Klee: rodeado de água e falando um monte de frases versadas como um repente notou que a beleza da música e de toda arte está no não pensar porque as frases vinham em forma escutava a forma do som no final de cada frase e a melodia ia surgindo sem que pensasse nas regras da sintaxe foi um momento iluminado e após tudo isso que cantava andou por sobre um terreno arado enquanto via uma bela árvore em sua frente Lembrou que os versos vinham do movimento de se arar a terra o vai e volta E assim andou por sobre os versos enquanto as musas subiam sensualmente se concretizando erroneamente nos galhos daquela árvore Errado porque sabe que eram as musas e vai até desenhá-las.

Lembra-se que na noite anterior fora convidado para trabalhar na fábrica.
Acaba indo ver. Conhece a senhora que cuida dos teares desde os 12 anos de idade Conhece algodão como água Um dos senhores o olhou meio estranho deve ter achado que eu era o outro rapaz que foi lá trabalhar Algum imaturo com grana e foi menos orgulhoso e recusou o trabalho.

Mais uma lucidez enquanto o molusco mordia o seu pênis.

O homem viu o outro homem com a mulher dançando no campo gramado ela parecia uma coluna espiralada de fumaça voando direto para o céu enquanto ele a rodopiava Eles continuaram sorrindo aquilo que você não participa também se narra e o homem sentado atrás do balcão de flores não comemora os mortos com flores alimenta peixes dentro da fonte no canteiro das hortaliças o que você não é também vive e cara Anjo do lixo o geral lá fora está próximo ou distante das tuas prioridades?

TENTÁCULO QUARTO

Nota que enquanto dorme a sua alma se perverte seduzindo as outras almas quase igual ao dançarino e sua mulher fumaça e ninguém imaginou o quanto o velho curtia a suas plantas enquanto o jovem funcionário comia sua filha de belos olhos azuis no quarto dos fundos E ainda não sabe o quanto do mundo é mundo os seus pais viam menos tv que vocês A sua alma está rompendo uma calçinha de seda no paraíso pondo sua mão inteira sobre sua vagina e dizendo Te Amo por isso tudo Só isso tudo que não sabe bem se toda a humanidade se esqueceu dentro de todas suas malditas drogas.

O homem sente o cheiro das árvores molhadas a chuva cheira e não molha chovia enquanto eles dançavam Veja as coisas todas como elas são fora da praticidade e da velocidade que impomos ao redor.

agora são 16 e 23, talvez umas 17, 17 e meia o sol vai começar entrar pela janela do quarto e iluminar com belos fachos de luz ouvindo The Clash no momento London Calling e temos que entendê-lo









QUINTO TENTÁCULO

Interbio na Federal. Uma nobre festa.
E o mundo é feito em camadas e as camadas se fazem nos tons de cores e as luzes têm as chances de o fazer brilhar mas sem que seu brilho se torne egoísta e o torne arrogante Se bem que é difícil fazer com que as pessoas entendam o que estava pensando agora sem o parecer egocêntrico ou egoísta Sentou-se em um pico muito bom Um pico com uma moça que conheceu um dia ontem O nome dela é Cá, Cá, Cá não sabe de que mais é cá A gente divide um belo instante juntos estamos vendo a estrada da Federal com todas suas cores e árvores e dissecando nossa memória de viagens pelo infinito de nossos cérebros você compraria uma caixa de tempo e espaço? Eles vendem porra o lance é forte.

O homem lê a mente das pessoas o que é muito perigoso e o ocidente está aprendendo que dentro de nós existe um espírito quando seus pés sobem até o intimo você tem que voltar porque céu é lugar para anjos e não para nós essa geração é descrente o suficiente para fazer o movimento recomeçar o mundo precisa mover O mundo vai surtar O espírito nos está nos pondo em nossos estranhos lugares E sabe por que não podemos dizer muito do que pensamos porque se eles despendessem um por cento dos brilhos que tem naquela cabeça alguém poderia querer os matar para tentar encontrar algo por lá dentro nessa mente o tempo é relativo lá por dentro

O tempo depende do nosso sentimento.
O homem vê as árvores e entende que as árvores são os seres superiores que existem pois crescem no mesmo lugar pacientes e se fazendo belas para nossas vistas.
O molusco voa.

É somente ser o presente ao lado da sua presença.
Possuí-la com todos os seus segredos é sua verdade de agora em diante

De antes de beijá-la e tocar suavemente cada concavidade do seu corpo.
O homem quer saber os seus sonhos.
Na parte que puder, fazer o possível para torná-los concretos.

E o dia vai amanhecendo e o azul entrando pela janela.
Sinta-se em casa, entre e aproveite!
Por aqui é lugar para todas as cores que vagam no espaço.

E enquanto amanhece ele pensa em vender a cômoda antiga dos seus avós para conquistá-la.

Quem sabe será só você por dentro e por fora.

Aquele ser não vive mais ali não baba mais por aquele teto não se enche mais daquele sexo sujo e não guarda mais poemas em seus tentáculos. Prende ainda aqui os sonhos desses universitários.
O homem ainda correu por entre a nuvem negra e chegando ao quintal viu o molusco subir para o universo por entre os galhos de uma árvore verde do jardim.
Sobrou-lhe somente a primeira e única estrofe do paraíso.

se o vago negro ao partir
o vago ser não pode sentir
o saber a que me fez liso
um exilado do paraíso








terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Alexandre, o feiticeiro



 
ALEXANDRE, O FEITICEIRO

baseado no conto homônimo de Cirinéia Iolanda Maffei ditado por Léon Tolstoi.
 
 
 
A ostra, conquanto usufrua o agasalho da concha e se rejubile na água nutriente do mar, fabrica a pérola, no âmago de si mesma.
Emmanuel.

Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça daí.
(Mateus, cap. X, v. 8).



No deserto o sol era uma imensa bola de fogo em límpido céu azul.
Os viajantes envolviam-se nos mantos para protegerem-se do areal.
Entardecia.



ROMA ANO 30 DC.



Um oásis.
Ao longe, tamareiras agitavam-se ao influxo da brisa ardente,
O reflexo na água ondulando suavemente.

Gritos de júbilo e suspiros de alívio e alegria.


Finalmente a linfa cristalina e fresca, a sombra agradável dos leques das palmeiras
O frescor das gramíneas que circundavam o manancial:
Leitos para cansados e suarentos corpos!

Acelerou-se o ritmo da jornada.
Por encanto até as alimárias apressaram os passos sem que os condutores as forçassem.
Agora o sol punha-se no horizonte, tingindo de vermelho e dourado os céus
Em longas e caprichosas nesgas de luz e sombra.

Rapidamente os homens armaram as coloridas tendas e acenderam o fogo para o preparo dos alimentos e a proteção noturna, tudo em meio a palavrório e risos.


                Em uma das barracas, estava aconchegado um velho em postura indolente.

Aguardava com paciência que os preparativos do acampamento fossem consumados.
Bem conhecia os privilégios que era alvo.
Breve as servas adentrariam a agradável penumbra para servir-lhe a ceia com generosidade e capricho.

Tinha o corpo magro.
Alquebrado pelo natural peso da idade.
E imprimia nos atos a sábia indiferença e naturalidade do hábito adquiridos com o passar dos anos.

                O velho Melquíades suspira, espera a chegada de seu protegido e aprendiz.
                Monólogo.

                MELQUÍADES
Onde estará? Provavelmente entre as mulheres, em inúteis conversas, gracejando, divertindo-se, quando deveria preocupar-se com coisas mais importantes...

                Um jovem de elevada estatura e extrema beleza física afastou os panos que vedavam a entrada da tenda, exclamando, entre irônico e bem-humorado:

                ALEXANDRE
Como sempre, estais a censurar-me, mestre!
Julgais que me envolvo com bobagens, todavia zelava tão somente por vossos interesses....
Vede o que achei junto à fonte de águas, por detrás da enorme pedra!
Felizmente outros olhos curiosos não a descobriram antes!


Exibia planta de exótica aparência, cuidadosamente envolta em trapos de linho.
O agastamento do ancião desapareceu de imediato.
Com surpreendente disposição, deslizou pelas almofadas, acercando-se do rapaz, retirando-lhe das mãos morenas e fortes o magnífico espécime botânico, os olhos brilhantes de curiosidade e expectativa.



Melquíades: Trata-se de uma raridade!



Melquíades busca nervosamente por pergaminhos e papiros e localiza um.



Melquíades: Aqui está, Alexandre! Depressa, depressa... Vês? È ela sem dúvida alguma! Aproveitá-la-emos com muito cuidado e com certeza nos fornecerá milagrosos elixires... Ou será melhor em forma de poção? Ungüentos, talvez?



Alexandre: Mestre, sabereis o que é melhor... Contudo, estáveis a condenar-me novamente, como se eu desse motivos para isso!



                Os olhos do velho enterneceram-se. Sua voz, comumente incisiva e autoritária, assumiu carinhosas conotações.



Melquíades: Temo por ti, meu filho! Necessitas conscientizar-se de que, em nosso trabalho, somos alvos de mil tentações. Muitas dessas encontram respaldos em nossas imperfeições espirituais. Gostaria que fosses menos atraente, de que não impressionastes tanto as mulheres... Sem falar no fascínio que tem pelo poder, pelo dinheiro... Conheço-te... Corres o risco de não cumprir a tarefa que te candidatastes ao renascer. Compreendes?



Alexandre: Não com alcance que vós conseguis perceber.



Melquíades: Esta caravana... Vejamos o caso dela... Grande, luxuosa, com mercadores importantes; muitos servos e escravos... Prestastes atenção no chefe? Acercou-se de ti, não foi assim? Que promessas fez?



                O jovem aprendiz olhou surpreso o velho. Como adivinhará o que acontecera junto às águas.


Melquíades: Sei que é bem difícil resistir quando nos acenam com poder, dinheiro e sexo, a menos que os tenhamos substituído por coisas de maior valor, as do espírito... E a consciência do dever fale alto em nós. És o filho que não tive... Conheces a história... Retirei-te de uma ruela em grande cidade... Encontrei-te junto à Porta em que as infelizes abandonam os seus rebentos. A riqueza dos panos que te envolviam reforça-me a convicção de que ilustre mãe te colocou no mundo...

Alexandre: Contai-me, mestre, uma vez mais! Rebuscai a memória traiçoeira, dela extraindo minucioso relato! Um dia, pressinto-o, tais informações serão de grande valia.

                O velho cerrou os olhos mergulhando-os no passado. Instantes depois, com voz pausada, iniciou o monólogo.

Melquíades: Roma é uma bela e estranha cidade, meu filho. Rica e miserável... Dissoluta e pura... Selvagem e culta... Contrastes extremos! Um dia, conhecê-la-ás melhor e poderás compreender-me... Naquela noite voltava eu de atendimento a paupérrimo doente, em quem as tisanas e poções não haviam dado jeito, quando junto à Porta dos Enjeitados, escutei brando vagido, quase inaudível não fosse o grande silêncio que envolvia a cidade adormecida. Naquele momento, enorme lua logrou livrar-se das nuvens que a ocultavam, clareando o local e lá estavas tu! Pobrezinho! Choravas tão baixinho! Contudo, a fragilidade do corpinho quase em forças salvou-te! Tivesses bradado pela desnaturada mãe em altos choros, atrairias mais rapidamente os cães famintos que perambulavam por ali. Abaixei-me, alcançando um galho seco jogado ao solo, protegendo-me dos pobres e agressivos animais que já se achegavam, espantando-os vigorosamente, trêmulo de medo e indignação. Cruel mãe e desatinado pai os que te lançaram ao monturo!

                Silenciou as emoções de outrora sensibilizando-o. Depois, prosseguiu:

Melquíades: Estavas envolto em preciosa manta, bordada com fios de seda e enfeitada com fitas e rendas. Coisa muito linda e delicada, ainda recendendo suavemente a flores e madeira. Espera!

                Levantou-se abrindo pequeno baú escondido entre as roupas de viagem de onde retirou amarelada peça sob os olhares ansiosos de Alexandre.
                Melquíades abriu a coberta pequenina, revelando o primoroso bordado e, a um canto, as iniciais em relevo: MH.
                A seda dos bordados ainda rebrilhava à luz da candeia. O rapaz adiantou-se, tocando o tecido receosamente, como se o contato pudesse queimar-lhe as mãos.

Melquíades: Que linda criança eras! Mais calmo, constatei que contavas poucos meses de nascimento. Ao cresceres, percebi tua inteligência e sensibilidade! Maravilhava-me com o teu progresso intelectual.

Alexandre: Por que saímos de Roma? Éreis conceituado, bem sei, tínhamos conforto, não vos faltavam clientes para os remédios, alguns riquíssimos...

Melquíades: Filho, um homem é responsável pelos atos que pratica, não lhe sendo permitido alegar ignorância das leis divinas, principalmente porque o conhecimento aumenta e valida essa responsabilidade. Não te esqueças! Infelizmente, minha fama espalhou-se a revelia de meus desejos, mercê das curas indevidamente consideradas milagrosas. O ônus não se fez tardar: romanos poderosos viram em mim um instrumento que lhes permitiria consolidar ambições e satisfazer paixões, procurando-me com nefastos planos, sombrios intentos. Recusei-me a negociar e conspurcar o trabalho e a faculdade de intercambio espiritual, sendo lançado a infecto calabouço. Não te lembras porque eras pequeno e a ama-de-leite cuidou de ti enquanto eu amargava na masmorra. Libertaram-me e antes que as coisas piorassem, embalei uns poucos pertences pessoais e cai no mundo, levando-te comigo. Temos perambulado desde essa época! Tenho orado para que essa caravana deixe-nos em longínquas terras, onde finalmente sossegarei.

                Retirou das mãos do silencioso rapaz a manta, depois, abraço-o longamente.

Melquíades: És o filho de meu coração, Alexandre. Aquele que dará continuidade à minha obra... Durante anos preparei-te... Acima de tudo, burilando teu caráter, fazendo de ti um homem de bem. Espero tê-lo conseguido! Agora, meu caro, durmamos! Sinto-me exausto e amanhã muito viajaremos!

                Não houve amanhã para o ancião. As areias do deserto serviram-lhe de túmulo.
  
ATO 2.





NA CIDADE DOS CÉSARES 50 DC.





Numa pequena casa uma lojinha de poções e filtros.





Adversários incômodos? Maridos indesejados? Esposas não amadas e controladoras? A bom e sonante preço, tudo se resolve!





Assim as habilidades de Alexandre espalharam-se rapidamente.

Aos poucos as luzes vão se mudando no palco e nos vemos num formoso e nobre palacete.



Alexandre sente-se entorpecido. Poderosa energia envolve-o e uma voz autoritária e irônica sussura-lhe aos ouvidos.



Oráculo (fora de cena): Deixa-me falar, deixa-me dizer o que pretendo! Far-te-ei uma celebridade! Profetizarás, saberás coisas do passado e do futuro... Inspirar-te-ei! Serás rico e famoso como sonhas! Trabalharemos juntos! Dar-te-ei o mundo meu jovem!



            Estaria louco? Mas a voz continuava, agora harmoniosamente e doce.

Oráculo (fora de cena): Queres uma prova de meus poderes? Justo! Presta bem atenção: amanhã um romano influente chegará ao teu estabelecimento, um pouco antes da metade do dia. Levará ao pescoço pesada candeia de ouro, adornada com precioso medalhão representando o deus Marte. Tratar-te-á com arrogância, como se fosses um servo qualquer, mas não deves humilhar-te, embora o desaforado jogue na mesa pesada bolsa de ouro que te fará brilhar os olhos. Mantenha indiferença! Desdenhando a paga principesca. Conduzi-lo-ás à saleta azul, onde com ele sentarás à mesa. Eu falarei por tua boca, servir-me-ás de instrumento dócil, passivo! Se me obedeceres, não te arrependerás!

            Singular letargia envolve o jovem, e ele adormece pesadamente. Estranhas figuras e lugares povoam-lhe os sonhos e, mesclado a tudo, a imagem do pai e tutor, em vão tentando lhe falar. Embora amasse Melquíades, queria fugir, afastar-se de seus conselhos.
            O sol arde nas pedras do pátio.
            O homem entrou.
            Era ele, sem dúvida, o medalhão confirma!
Arrogante, jogou sobre a mesa grande bolsa.

Romano: Por um filtro, um venenoso filtro de fulminante efeito!

            Alexandre o reverência convidando-o a passar para uma saleta azul. Quando vai pronunciar as primeiras falas, intensa onda vibratória o envolve. Ouve-se a própria voz de Alexandre, mas não são suas as frases contrapostas com a voz do Oráculo.

Alexandre: Por que quereis matá-la, nobre senhor?

Romano: Isso não te diz respeito, mago! Vejo que és muito jovem, o que não justifica um interrogatório com tamanho atrevimento! São negócios! Basta que eu te pague pelo serviço!
           
            Alexandre solta um estrondoso riso transfigurado.

Alexandre: Ah, sois orgulhoso, magnífico senhor... Poderias deixar-vos cair em irremediável erro, sinto-me terrivelmente tentado a fazê-lo... No entanto, o orgulho e a vaidade não são atributos vossos somente... Há meios muito mais sutis e inteligentes para conseguir o que almejais... Raciocinando melhor, compreendereis que estais condenando à morte a pessoa errada?... Mas, se o desejais... Que veneno pretendeis?

Romano: Quem sois, afinal? Certamente assessorais o mago! Agora percebo que alguém fala por sua boca, provavelmente um espírito! Consegue ler-me os pensamentos mais oculto! Podeis prever o futuro?

            Um afirmativo sinal de cabeça do médium Alexandre.



Romano: Tenho que eliminá-la! Até agora era-me vantajoso tê-la como amante, contudo tornou-se perigosa, muito perigosa! Se revelar os meus segredos serei levado à morte por traição ao Estado. Além disso, já não possui a esplendorosa beleza de anos atrás e o fogo da paixão gelou-me nas veias. Não aceita o fim do nosso relacionamento! Ameaça-me, entendeis? Que posso fazer em tais circunstâncias?

Alexandre: Conheceis muito bem os laços de parentescos de vossa amante com o imperador! Arriscar-vos-ei a tanto? Tendes a ponderar que, vezes sem conta, serviu ela a Roma como intermediária em secretos conluios, usando o leito de seda para a consecução dos interesses do império e mesmo os de cunho de interesse pessoal do imperador... Criatura perigosíssima, ardilosa, bem o dissestes! Acreditais seu assassinato será ignorado? Jamais! O divino César moverá céus e terras para descobrir o autor da façanha. Considerará um atentado à sua vontade e ao bem do Estado, pois perderá uma das mais eficientes espiãs! Faremos melhor! Meu companheiro fornecerá...

            Alexandre sai com o romano.
            O prestígio do jovem bruxo estava selado.
         O pretenso profeta lançava luzes ao dia-a-dia dos romanos, estimulando-lhes as viciações, a vaidade, o orgulho, a inveja, fascinando-os com a conversação maliciosa e os conselhos astutos e nada éticos.


ATO 3.




AS FESTAS DE ROMA

           
As mulheres levavam Alexandre às reuniões sociais, subtraindo-o à obscura plebe, lançando-o em uma sociedade inconseqüente e materialista.
Sua presença tornou-se o ápice das festas entretendo e seduzindo. À aura de mistério e poder juntava-se a beleza física, como temera Melquíades.

            O moço embarca de corpo e alma na atordoante atmosfera de Roma, secundado pelo espírito, o Oráculo, ligado a ele pelas afinidades vibratórias.

ALEXANDRE
Deixar Roma, jamais! Deixar a minha notoriedade e assédio para seguir aos princípios do mestre, meu saudoso pai... Não, nunca!

            As festas sucediam-se.
        O verão atingia Roma com uma onda de calor incomum e os patrícios se ausentavam para os campos, onde a vegetação e as águas minoravam a canícula.
            Alexandre fora refugiar-se numa dessas casas.
           Eras convidado ilustre acolhido em uma das famílias dos patrícios.
      
       A forma indiferente com que Alexandre se conduzia nas questões amorosas pessoais, exarcebava a vaidade e o orgulho femininos.


ATO 4.



NOS CAMPOS DE ROMA 50 DC.

            Afastada da via, mais ainda assim visível, por antigas e magníficas árvores, encantadora vivenda desperta atenção. Uma casa envolta em um ar de mistério e reserva intrigantes, longe do bulício de hospedes e convivas.

Alexandre: Quem habita a casa?

Patrício: Uma jovem de nobre família romana nela reside, meus caro. Desde que os pais e a única irmã morreram ela tem vivido só, afastada do mundo.  No começo a convidávamos, mas acabamos por desistir ao constatar que se desculpava sempre... Talvez devêssemos ter persistido... Trata-se de uma moça belíssima! Seria disputada em nossas festas, dilacerando corações!

Alexandre: Julgais que seria de bom alvitre uma visita minha, a pretexto de estabelecer bom relacionamento com os vizinhos? Afinal, os convites recusados não partiram de minha pessoa e posso muito bem omitir o fato de ter-vos questionado a respeito...

Patrício: Não vemos nenhum inconveniente! Se ela consentir em falar contigo, meu caro... Será difícil...



Uma alma agitada observa a casa durante dias
Sentado sob as copas, entretido aos pergaminhos,
Na solidão e tranqüilidade do refúgio, dedicadas à meditação e ao estudo,
Retorno às origens abandonadas devido ao furor festivo dos romanos,
Entre os raios de sol que atravessam a massa compacta e luxuriante das folhas,
O frescor da mata.

                Suave brisa e perfumosos odores proporcionaram-lhe o tão esperado encontro.

Uma mulher em claras vestes e longos cabelos loiros.
Deitada em pequena elevação de macia relva, adormecia.

                Contempla-a extasiado.

Os sedosos cabelos espalhados sobre o improvisado leito,
Adornados por delicada guirlanda de flores.
Um chapéu abandonado ao chão.

                A noite desceu lentamente, sem lua ou estrelas no céu de escuro azul.

Ela ri baixinho.
Tateia na escuridão, provavelmente procurando o chapéu.

                Repentinamente, embora se mantivesse imóvel, a moça percebeu-lhe a presença e seus dedos encontraram-no.

Não mostrou temor, limitando-se a indagar, com voz calma e suave.

Márcia Helena: Que fazeis aqui, senhor? As terras pertencem-me e estais invadindo...

Alexandre: Eu... Quisera... Eu... Estavas dormindo...

Márcia Helena: Não são necessárias explicações, senhor! Melhor sigais vosso caminho e não retorneis, por gentileza, pois apreciamos solidão e privacidade.

                Olhos nos pergaminhos deixados sobre a relva.

Márcia Helena: Não esqueçais vossos instrumentos de estudos. Deduzo sejam preciosos, pela antiguidade que demonstram... Levai-os!

                A jovem desaparece rapidamente na noite.
                Linda!
                Postura de rainha e semblante de anjo. Educada com esmero. Natural e gentil.



De que cor seriam os olhos que não conseguira vislumbrar à luz do luar?

Patrício: Descompromissada, extremamente rica... Herdeira única de terras e significativo patrimônio... Os familiares arrebentaram-se de encontro a recifes, afundaram junto da luxuosa galera! Ela, única ausente da embarcação, optara por viver no campo, longe do bulício de Roma!

Alexandre: É doce, serena e calma, não julgo que algo a atormente! Que segredos oculta tão bela criatura?

                Durante semanas dispôs buquês de flores na varanda, em frente ao quarto de dormir da moça.

Alexandre: Onde está o Oráculo? Creio que o pensamento apaixonado na moça me secunde o desenvolvimento mediúnico!
                Amo-a tenho certeza! Não consigo a afastar do pensamento...

                Encontrou-a.
                Vestia azul, os compridos e louros cabelos trançados com fitas de mesma cor.
                Seus olhos eram também azuis, orlados de longos cílios escuros.
Uma faixa de seda cingia a cintura.
Era ainda muito jovem, nas mãos flores colhidas pelo caminho.

                Olharam-se.
                Um irresistível impulso: o rapaz aproximou-se, envolvendo-a em apaixonado abraço, colando os lábios à trêmula boca.
                Natural. Longo, terno e doce beijo, à sombra das enormes árvores.

Recolheram-se aos luxuosos aposentos, onde se entregaram a mil considerações e hipóteses.
Manha seguinte.
Entra Oráculo.

Oráculo: Que fazes? Com tanta mulher à tua volta? Escolhes justo uma que vive isolada do mundo! Bem sei do segredo que aquele coração guarda, mas não te revelarei nada, ouviste! Nada! Não pedistes contanto darei de graça o que cobra em ouro dos outros, um aviso: afasta-te dela! Não é para ti! Em nome de uma loucura denominada amor fará com que perdas todos os privilégios, luxos, comodidades, riquezas... Serás desprezado, perseguido...

Alexandre: Somente agora me procuras? Onde estavas quando te chamei?

Oráculo: Não deixaram que me aproximasse de ti! Aquele intrometido, o velho que te ensinou misturar essa água suja que vendes! Malquíades! Tu somente pensavas na moça, não tive acesso aos teus pensamentos...
                Afasta-te dela, repito! Ficarás pobre, perderás teu prestígio, sofrerás humilhações e ingratidões... Serás perseguido e os deuses fulminar-te-ão com a ira dos céus!

                Desaparece.
                Entra Márcia Helena.



 Márcia Helena: Encontro-me enamorada de ti. Mas tenho restrição a tua atividade profissional! Mago de renome? Hábil com filtros e poções, mercador do além... É verdade?

Alexandre: Como negar?! Fui abandonado e sinto necessidade de reconhecimento e admiração de uma forma avassaladora! Tenho sede de prestígio... Uma ambição desenfreada! Melquíades encontrou-me na porta dos enjeitados! Eu somente gostaria de encontrar minha mãe e mostrar-lhe que tornei-me alguém! Sinto remorso... Sim! Desde que a conheci, sinto remorso!
                Sinto-me envergonhado! Tenho usado os meus dons e conhecimentos para incentivar fantasias e paixões, atento contra o livre-arbítrio e a existência das pessoas... Onde seputei nobre e dignificante educação recebida? Onde naufraguei os conceitos éticos e morais que deveriam nortear a minha vida?

Márcia Helena: Dizeis que fostes retirado da Porta dos Enjeitados?! Em Roma?! Mencionastes também ricas vestes e uma manta, uma manta bordada com fitas e rendas preciosas... Meu Deus, por acaso nela havia um holograma?!

Alexandre: Sim, no canto direito. MH, para ser exato, entrelaçados...

Márcia Helena: É a minha manta, a minha manta!

                Desfaleceu antes que ele pudesse ampará-la.

Alexandre: Peço-vos, em nome dos deuses, contai-me a verdade. Sabeis quem sou? Toda a minha vida quis conhecer a mulher desnaturada que me colocou no mundo, atirando-me ao monturo para ser comido pelos cães... Conheceis minha mãe, certamente, até dizeis que sois dona da manta...

Márcia Helena: Não a chameis de desnaturada, porque não lhe conheceis a história de dor e de sacrifício! Jaz no fundo do mar, sob toneladas de água, mais sei que vela pelo filho, guiando-vos até mim.

                Levantando, a moça caminha até um móvel dele retirando preciosa miniatura.

Márcia Helena: Essa é vossa mãe, minha irmã! Nosso pai adotou-me quando ainda era bem pequenina, praticamente de colo. Ambos, o consangüíneo e o adotivo, serviam como elevados oficiais do exército de Roma. Meu pai verdadeiro sucumbiu em batalha, delegando ao amigo e superior a tarefa de colher-me como filha, pois minha mãe havia falecido também. Vede! Diferimos fisicamente! Contudo, embora o mesmo sangue não nos corresse nas veias, éramos almas irmão, afins e amorosas. As iniciais pertencem-me: Márcia Helena. Na época minha irmã já era uma menina linda e sonhadora. Quando eu contava seis anos de idade, a tragédia visitou-a na figura de um homem belo e inescrupuloso. Embora criança, lembro-me perfeitamente... Relatar-vos-ei a história de Flávia, vossa mãe.

                ***



Sai Alexandre.

ATO 5.



Monologo.
MÁRCIA HELENA ENQUANTO VIA JESUS SOBRE AS PRAIAS PALESTINAS.


Márcia Helena: Os exércitos romanos haviam conquistado grandes regiões, dominando povos e espalhando o império por todos os lados. A nação hebraica, como tantas outras, sucumbira ao seu julgo. As principais cidades ostentavam as marcas da cultura de nossa gente. Designado para uma delas, o meu pai adotivo mudou-se para Palestina, levando consigo a esposa e as duas filhas.
Meu pai não aceitava de forma alguma os hábitos devassos da sociedade romana, a permissividade que medrava nas melhores famílias patrícias.
As facilidades excessivas minavam o espírito, enfraquecendo-o. Assim pensava papai. As refeições em casa eram equilibradas e frugais, as bebidas controladas, as festas, em moda na época e que descambavam em orgias, constituíam terminante proibição.
Nossa convivência social era limitada a reuniões com seleto grupo de amigos, música, leitura de poemas selecionados... Levávamos essa existência feliz e produtiva: estudávamos, bordávamos, nos dedicávamos à música e à leitura, passeávamos pelos jardins de nossa residência...
Conto-vos esses detalhes para que percebais determinados aspectos do caráter de meu pai adotivo. Aqueles eram dias de muitas mudanças, que ficariam indelevelmente marcados na história da Humanidade e em nossos corações, embora não o soubéssemos na época.

(...)
Os judeus ansiavam por um salvador, profetizado pelas Sagradas Escrituras como o Filho de Deus, aquele que estabeleceria na Terra o seu reinado e que, por extensão, permitiria que exercessem a supremacia sobre os demais povos.
(...)
Para desespero de muitos que o esperavam com a magnificência de um rei, aos moldes terrenos, ei-lo que surge humilde e amoroso, com total e irrestrito desapego aos bens materiais e ao poder!
Recomendou o amor aos inimigos...
Aconselhou que se desse a César o que de direito e a Deus o coração.
O coração onde Ele deve ser adorado em espírito e em verdade, único tabernáculo resistente aos embates e vicissitudes do tempo...
(...)
Acolheu os pequeninos e condenou os hipócritas...
Pontificou o perdão, a humildade, a tolerância, a paciência, o amor...

Nós conhecemos esse homem pessoalmente!

Adorávamos andar pela praia, bem cedinho, recolhendo o que a maré lançara durante a noite às alvas areias: conchinhas, peixinhos ainda vivos que devolvíamos ao mar, pedrinhas e, de vez em quando, objetos, alguns bem interessantes. Acompanhávamos sempre uma serva, atenta a tudo e a todos.
Naquele dia as areias estavam coalhadas de gente, vindas de muitos pontos, alguns distantes. Os olhos verdes de minha irmã surpreenderam-se com a pobreza e o sofrimento daquelas criaturas. Lembro-me de vê-la chorar! Quantos doentes, quantas deformidades, quantas criancinhas desnutridas ao colo de suas esquálidas e entristecidas mães! Acomodamo-nos à distância por ordem de nossa guardiã, muito embora desejássemos misturar-nos ao povo.
Os barcos voltavam da pesca. Em um deles, um homem destacava-se. Fechando os olhos, vejo-o ainda: de altaneiro porte, estava à frente de uma das embarcações e o sol incidia em cheio sobre Ele; os olhos eram claros, incomuns entre os de sua raça; os cabelos, cor de mel, daquele tom incrível que adquire quando o escorremos do pote, como se absorvesse a luz e a refletisse; o sorriso era doce e ao mesmo tempo enérgico e parecia dirigir-se a cada um dos presentes em especial, retirando-nos do anonimato; as mãos fortes e bronzeadas não tinham a rudeza daquelas que trabalham braçalmente; os dentes, alvos e perfeitos, entremostravam-se através da barba bem cuidada e à moda nazarena.
Era belo, muito belo, e, à sua visão, nossos coraçõezinhos dispararam.
Senti em minha mãozinha a de vossa mãe e ela estava trêmula...
(...)
Os pés descalços mergulhados nas espumantes ondas, caminhando de encontro à multidão subitamente silenciosa e expectante. Na minha visão infantil e acostumada às crenças religiosas romanas, acreditei fosse um deus!
Jesus, assim o chamavam. Subiu em uma formação rochosa e de lá sua voz dominou a praia, milagrosamente amplificada. Contava histórias, lindas, singulares e singelas histórias, cujo o alcance, eu restringia ao meu entender de criança. Muitos choravam, pois Ele penetrava o recôndito de suas almas em sofrimento, levando-lhes consolo e esperança, dissipando a ignorância, mal maior da Humanidade. Quando calou, misturou-se à turba, acolhendo os enfermos, curando-os com o toque de suas formosas mãos.
Estávamos encantadas!
-“Deixai vir a mim as criancinhas...”
Voltamos aos mesmos lugares nos dias seguintes! Foi fácil convencer a serva que deveríamos segui-lo. Não tínhamos a noção do que estávamos aprendendo e a importância para nossos espíritos imortais...
Quando o Rabi e seus discípulos partiram, a praia parecia haver perdido seu encanto... Vazia e desolada... Em nossa puerilidade, não compreendíamos que ela era tão somente o cenário ideal para magnificência do Mestre.

Entra Alexandre.



Márcia Helena: Crescemos. Minha irmã tornou-se uma linda jovem, de longos e negros cabelos e estupendos olhos verdes. Infelizmente, seu coraçãozinho ingênuo e sonhador interessou-se por garboso oficial romano, famoso por suas conquistas amorosas e temido por seu caráter leviano e inconseqüente.
                Nosso pai, austero e probo, indignou-se com a escolha de Flavia, dispensando o moço sumariamente, ignorando as lágrimas de vossa mãe. Talvez, se tivesse conversado, explicado... Quem sabe permitido o namoro para que ela mesma, devidamente protegida pela família, acabasse decepcionada com o caráter do jovem... Acredito que o rigor foi exagerado, impedindo que ela acatasse os conselhos e ordens com menos dor e revolta, impedindo que ela despertasse da primeira paixão com seqüelas menos desastrosas.
                Foram meses de relacionamento às escondidas, com encontros em lugares sigilosos, incluindo trocas de juras e promessas de amor eterno. Nossa ama percebeu o aumento do volume do ventre da mocinha que criara como filha, apavorando-se. O oficial, temendo a reação de nosso pai, seu superior hierárquico, tratou de rapidamente conseguir transferência para local bem longínquo.
                Alguns dias antes do nascimento o segredo guardado com tamanho cuidado fora revelado por um subordinado do quartel em discussão com meu pai. A notícia teve o efeito de uma explosão! Mal nascera a criança, nosso pai encarregou um dos servos, que considerava esperto e confiável, de levá-la a Roma sigilosamente, entregando-a nas mãos de idosa parente, senhora de poucos recursos que concordara dela cuidar em troca de determinada soma de dinheiro e de uma pensão mensal, que meu pai prometeu enviar religiosamente.
                Vosso avô não pretendia eliminar-vos! Perderam-no o orgulho em demasia, o temor do escárnio, a vergonha... Quem somos nós para julgá-lo?
                Embora desesperada, Flávia conformou-se, acatando as arbitrárias decisões paternas, até porque nossa mãe e a ama prometeram que um dia voltariam a Roma e, vendo o netinho crescido e lindo, o coração do avô abrandaria, concordando em recebê-lo como membro da família, perdoando-lhe pelos desgostos que causara.
                Quando partistes, minha irmãzinha enrolou-vos na mesma manta que me envolvera ao ser levada para o lar adotivo e que ela zelosamente guardara entre seus pertences, dizendo:
                - “Para dar sorte filhinho! Logo nos encontraremos em Roma! Perdoai ao avozinho, ele é uma boa criatura! Somente está muito zangado comigo. Jesus ensinou-nos a paciência, a fé, a esperança... Tudo dará certo e meu coração jamais se afastará!”
                O que aconteceu na viagem eu somente saberia tempos depois, ao voltar a Roma, pela boca da escrava que meu pai destinara ao vosso aleitamento. Havia gasto tudo o que o canalha lhe dera em troca de seu silêncio e o remorso atroz atormentava-a. Repartiriam o dinheiro, seriam ricos, livres, jamais encontrados... Ela cedera à tentação; deixaram a criança na Porta dos Enjeitados!
                Enquanto isso tudo ocorria, nós, na Palestina, de nada sabíamos, julgando-vos em segurança em Roma!
                Meu pai decidiu partir em regresso com a família, deixando-me adoentada em Jerusalém. Ele havia sido nomeado para ambicionado posto na capital do império.e eu não poderia agüentar a travessia. Meu querido, não houve da parte deles descuido ou desamor: eu seguiria mais tarde, assim que passasse o perigo de contágio, com servos da maior confiança.
                Furiosa tempestade em alto-mar enterrou minha família no fundo das águas.
                Abalada, empreendi a travessia de regresso para encontrar o meu sobrinho. A velha senhora surpreendeu-se com minha visita, principalmente porque ignorava que nosso pai houvesse ocultado de seus familiares o fato de ela jamais ter recebido a criança!
                Achava-me só no mundo! Sem família e nenhum afeto sincero. Pensei em casar, mas logo me desiludi, pois os pretendentes visavam o imenso patrimônio que meu pai havia me deixado como herdeira única. Tornei-me alvo de interesses espúrios. Afastei-me, pois a idéia de realizar uma união alicerçada em conveniências econômicas ou tão somente em carências afetivas repugnava-me. Deliberei permanecer sozinha até aparecer o eleito de meu coração.
                Roma resumia-se a festas e devassidão. Tive medo da solidão que me rodava, mesmo quando em meio a muitos!
                (...)

Márcia Helena: O homem da praia, não obstante fosse muito jovem quando o conheci, jamais fora olvidado! Sua doutrina luminosa, verdadeiro manancial de serenidade e ternura, despertava em mim o desejo de relacionamentos embasados na real afeição, no amor por Ele preconizado. Jesus perecera na cruz, sempre exemplificando amor e perdão, e eu julguei por muito tempo que haviam sufocado a semente plantada com tanto sacrifício e dedicação, principalmente ao estado de isolamento em que vivia, mesmo quando meus pais adotivos eram vivos. Para minha surpresa, em Roma os seguidores estavam por toda parte, embora em sigilo, devido às sérias restrições do Estado. Comecei a freqüentar as reuniões evangélicas, tornando-me cristã.
                Fora um dos discípulos do Mestre que curara-me da moléstia que me impedira de viajar com a família! Como eu pudera esquecer das palavras do servo do Mestre durante minha convalescença, uma vez que ele me visitava religiosa e diariamente?
                Contrastavam com sua simplicidade e rude aparência, os conceitos profundos sobre imortalidade da alma, destinação do ser sobre a Terra, caridade... Participando dos encontros cristãos, reencontrei tais conceitos nas palavras daqueles que propagavam a doutrina de Jesus na cidade dos césares!
                A agitação da metrópole afligia-me; reuníamos em locais secretos, resguardando-nos das proibições estatais, arriscávamo-nos à prisão, tortura e morte; sentia-me sozinha em meus temores, conquanto os companheiros da crença. Um dos anciãos, constatando-me a exacerbada ansiedade, aconselhou a transferência para o campo, onde gozaria de maior tranqüilidade e menos pressão social, já que se tornara ponto de honra para muitos casar-me a qualquer custo. Assim, vim para esta encantadora vivenda, pertencente à família e herdada por mim, transformando-a em abençoado refúgio, dedicando-me ao estudo e à beneficência. Acabaram por deixar-me em paz!
                Não pense que eu abandonei as buscas! Infelizmente, a amada criancinha desaparecera, envolta em profundo mistério. A razão sinalizava que estaria morta, mas meu coração jamais deixou de esperar que ela aparecesse!
                (...)

Alexandre: Vós não sabeis o quanto minh’alma está alegre em saber a verdade! Dor maior que o abandono daquela que nos gerou não existe! Impede-nos de amar, pois passamos a encarar as criaturas como profundamente capazes de rejeitar! Culpei-a, fui injusto, mas o destino propiciou nossa reunião para que tudo se esclarecesse... Sinto-me em paz! Tendes idéia do que está acontecendo? Da beleza deste momento e do que relatastes? Tempo e espaço perderam sua importância, os elos de amor reataram-se! Muito pequena, participastes da trágica história de minha mãe, agora, conhecemo-nos, amamo-nos! Incrível! Pelos costumes de nossa época, seria normal que estivésseis casada e com filhos, todavia esperastes, pressentindo que o amor, aquele que une almas afins surgiria!

                O rosto de Márcia entristeceu-se.

Márcia Helena: Somos, no entanto, muito diferentes, meu querido. Será que o amor bastará para que superemos as diferenças? Viveis do comércio de vossas faculdades; mercadejais com o que o Mestre ordenou de graça ofertar, pois nada vos custou; manipulais e criais fórmulas que deveriam servir para curar, todavia são usadas para destruir as pessoas e constranger-lhe o livre-arbítrio. Sabei que muitos dos que se denominam cristãos possuem semelhante dom? E que Jesus mencionou, vezes diversas, os fenômenos de comunicação com o mundo dos que se foram e até deles participou, conforme narram os Evangelhos? Eles, entretanto, usam suas faculdades para o bem e para a evolução das criaturas! Assusta-me o fato de que utilizeis algo tão sublime, redentora oportunidade de serviço em favor do próximo, para riqueza e engrandecimentos próprios.
                Dissestes que uma entidade assessora vossos trabalhos, aconselhando os consulentes e até prescrevendo fórmulas?!... Que tipo de criatura recomendaria tais desmandos e tamanha insensatez? Perdoai-me a franqueza, mas não posso omitir-me em relação a tamanhos absurdos! Há muito a consciência procura alertar-vos... Sabeis que os frutos de vossas ações são amargos e venenosos, indicando a qualidade da árvore que os produz? A quem ouvis e seguis? Não podeis seguir a dois senhores e viver em paz...

Alexandre: Mas não sou cristão! Cobrais mudanças de tamanha profundidade, esquecendo que quase nada sei desse Mestre a quem vos referis... Parece-me que estais colocando esse mesmo Mestre como entrave entre nós! Sinto-me perdido em dúvidas... Por acaso compreendeis o custo resultante da aceitação dos princípios que acabais de colocar?

                Alexandre e Márcia Helena saem.

ATO 6.



DA DISPUTA COM O ORÁCULO.



                Escutamos a risada zombeteira e sarcástica do Oráculo.

                Entram Oráculo e Alexandre.

Oráculo: Ora, ora... Estamos a sofrer... Bem que avisei! Tua santinha já está a mostrar as garras cristãs! Acreditam em sofrimento, dores, choros , ranger de dentes, caridade, pobreza... Por acaso julgastes que seria diferente? Pois eu te digo, parafraseando o tal Mestre, em verdade te digo, perderás tudo o que tens, amargarás penúrias e abandonos dos que importam no mundo, serás apedrejado! E tudo por desejar uma mulher?! Cria juízo, meu amigo! Mulheres há aos montes! E sem os problemas que essa santinha causará!
                Ela insinua que eu engano os consulentes? Mentira! Eu leio suas almas; exploro o que têm guardado no recôndito de suas consciências! Ainda se tivessem coisas boas... E te digo mais: se me perderes, nada serás!

Alexandre: Oh! Imensa luta travasse em meu interior! De um lado as ilusões terrenas; do outro, as verdades espirituais. Ao privilegiar a carne transitória, não mais poderei alegar ignorância da responsabilidade concernente a um espírito encarnado! Com outras palavras e jamais tendo contato com Jesus, Melquíades ainda vivo dissera as mesmas coisas alertando-me no tocante aos tortuosos caminhos que insisto em trilhar!
                Será que poderei esquecer tudo e continuar sem o teu auxílio, Oráculo?
                (...)

Alexandre: Jesus!
                Nada sei a respeito do Rabi, a não ser as informações repassadas por Márcia, impregnadas de emoções da infância. Não seria Ele mais um falso profeta, como muitos que progrediam naqueles tempos difíceis, enriquecendo-se com a ignorância do povo e a ingenuidade dos simples e bem intencionados? Precisava ter certeza!
                Estranha figura aquela, que se entregara ao infame madeiro mesmo tendo o decantado poder de curar cegos e leprosos, restituir movimentos a paralíticos, multiplicar pães e peixes, andar sobre águas, ressuscitar! Teria realmente realizado tudo aquilo ou seriam meras lendas, reforçadas por sua morte e fanatismo dos seguidores?
                Roma continua a cultuar deuses de mármore, magníficas e frias estátuas espalhadas pela urbe, templos e lares, deuses com qualidades e imperfeições humanas...
                Os cristãos não se revelam tão facilmente, pois temem fatais represálias... Como descobrir a realidade?
                O que sei é através dos prosélitos do Nazareno: Ele marcou profundamente o coração dessas pessoas! Determinou surpreendentes escolhas e mudanças incríveis em suas existências! Insanos, loucos, temerários, ou detentores da Verdade?

                Saem Oráculo e Alexandre.

ATO 7



À FLORIDA VIVENDA DA JOVEM

                Entram Alexandre e Márcia Helena.
                Ela recebe-o com confiante e tranqüilo abraço dos que optam pelo amor.

Alexandre: Há dias não trabalho, abstendo-me de atender importantes compromissos, sentindo-me inseguro, inepto. Vosso Mestre abalou-me as estruturas mais intimas, roubando meu sossego. Maldito seja! Quero-vos, mas tão somente a vós, não a esse profeta, misto de feiticeiro e líder religioso! Se me amais, afastai-vos de tudo, rompei com essas crenças absurdas e vinde comigo! Casaremos, teremos filhos, seremos felizes...

                Perambula pelo palco, presa de franca agitação.

Alexandre: Sois ingênua, tendes veneração pelo homem que conhecestes há muito tempo! Sequer conhecei o risco que enfrentais, ligando-vos aos cristãos, criaturas execradas, perseguidas pelas leis romanas! Sabeis o que acontecerá caso sejais presa? A soldadesca não respeita as mulheres lindas condenadas pelo crime de seguirem Jesus! Compreendeis-me? Acordai! Viveis em um mundo à parte, enclausurada nesta casa confortável e rica, longe das pessoas importantes, fugindo á vida... Credes que sereis bela para sempre? Que a solidão não vos angustiará com o passar do tempo? O verdadeiro mundo, aquele do qual fugis, é cruel! Necessitamos impor-nos, tomar posse daquilo que nos pertence com fortes mãos e firme cabeça, à força, se preciso! Não me interessa esse Jesus e muito menos o Deus que Ele tenta impingir-nos, único, sem estátuas para o culto, que dá a seus filhos a cruz e o circo!

                Tomado por estranha energia,obstava-lhe as palavras conciliadoras.

Alexandre: Não sei o que está acontecendo comigo, mas certamente não pretendo abdicar de tudo que construí e possuo! A faculdade de servir como medianeiro entre dois mundos... Dizeis que devo utilizá-la para o proveito e bem dos outros, sem auferir lucros materiais... Por quê?! Não me disponho a trabalhar de graça para ninguém! Colocastes que a utilizo para forçar vontades e alimentar ilusões? Que seja! Que mal há em fazer isso? Somente atendo ao solicitado... Cobro por meu tempo! Até hoje, comportei-me assim e tenho me saído muitíssimo bem!

                Derruba estatueta e nem percebe. Continua o agitado monólogo.

Alexandre: Amo-vos sim, mas não quero, não desejo mudar, não pretendo renunciar a nada! Sou um mago, um feiticeiro, um conhecedor das forças ocultas... E dos bons! O melhor! Por mim fala um espírito e ele assessora-me, autorizando o ganho de muito ouro! Qual o problema?!

                A moça chora silenciosamente. Reconhece a inutilidade de qualquer pronunciamento. Estava transtornado, trêmulo, irreconhecível. O Oráculo estava ali com ele, mas era quase impossível detectar sua presença.

Márcia Helena: Pergunto-vos, através do espírito de minha falecida irmã e vossa mãe que me inspira agora, pergunto-vos se porventura outros espíritos manifestaram-se através de ti? Digo-vos, que caso permitas, um espírito muito especial e querido em breve entrará em contato, estando destinados a juntos desempenhar importante tarefa.

                Entra Oráculo

Oráculo: Podes desistir, minha santinha! Achas que deixaria outro qualquer chegar perto do corpo que me pertence por direito e conquista? Ele é meu, meu, entendes?! Meu! Tu deves cair fora, caso queiras continuar a gozar de boa saúde... Para teu próprio bem, afasta-te! Deixa-nos em paz!

                A intuição retornou.

Márcia Helena: Pensas na figura luminosa de Jesus; sua ternura, seu amor, sua sabedoria, sua paciência, sempre esperando de nós a mudança!

                Alexandre muda a feição, como que desperto de profundo transe.
                Sai o Oráculo.

Alexandre: Que disse eu? Ofendi-vos? Sinto que deveria ter cuidado melhor das palavras, embora não as recorde em absoluto!

Márcia Helena: Despreocupai-vos, meu caro. Estais ansioso, abalado com as mudanças, nada de incomum. Hoje teremos uma reunião e estais convidado! Vereis que somos pessoas comuns e que Jesus é a luz da libertação, jamais motivo de constrangimento. Não me peçais para abjurar a fé que abracei, pois de mim estareis tentando retirar o mais valioso, o pilar sobre o qual repousa o equilíbrio de minha existência. Embora não concorde com a maneira como conduzis a faculdade com a qual encarnastes, respeito-vos o livre-arbítrio. Acredito que, conhecendo-nos melhor, colocando em nosso coração a doutrina do Mestre, atingiremos um ponto harmônico na mutua convivência.

                Saem Márcia Helena e Alexandre.

ATO 8.



OS ENCONTROS CRISTÃOS


                A noite apresentava-se enluarada.
                Estrelas tecem o dossel no escuro azul;
                Brisas cálidas agitam as copas das árvores e espalham perfumes do campo nos ares.
                A carruagem venceu a distância que os separava de Roma.
                Acompanhava-os um único e hercúleo servo, também adepto do Cristianismo.

Amarraram as rédeas a sólido sicômoro.

                Um caminho seguia disfarçado entre a vegetação.
Mal discernido sob o luar que se derramava argênteo.
Os três por eles caminharam, notando que outros silenciosamente os precediam.
Após meia hora, o casarão destacou-se sobre o céu. Estava em péssimas condições! Pisando as folhas mortas que juncavam o chão, chegaram ao átrio, onde tremeluzia a chama de discreto archote. O servo, sempre à frente, conduziu-os a enorme salão.

                Alexandre observa os detalhes do prédio. Quem teria ali residido? Que sonhos aqueles salões teriam guardado?

                Com sua aguçada sensibilidade mediúnica, esticou a mão, tocando primoroso painel, fechando os olhos e deixando a mente passear ao sabor das sensações. A voz sussurrante da jovem fê-lo retornar ao presente, sugerindo que se colocassem em um dos cantos menos lotado.
                Somente então constatou que a enorme sala estava praticamente tomada por silenciosas presenças, das quais, com surpresa constatou, muitos eram representadas por romanos de nobre estirpe, vestidos com simplicidade, misturando-se à plebe e aos escravos.
                A naturalidade com que todos se irmanavam impressionou-o sobremaneira, pois muito bem conhecia o rígido sistema de castas que comumente imperava.

                Um homem de alvos cabelos e barbas destacou-se da multidão. Assume posição em improvisada tribuna. Vestes rústicas e desataviadas: tratava-se de pessoa do povo, acostumada a labores braçais. Certamente não tivera instrução metódica e formal, depreendeu Alexandre, preparando-se para enfrentar uma palestra maçante e desprovida de conteúdo.

                A voz, ligeiramente titubeante a principio, logo adquiriu firmeza, revestida de impetuosa energia, enquanto os olhos calmos e ternos percorriam os que se arriscavam para ouvir os ensinamentos de Jesus através de suas palavras de humilde discípulo. A inflexão da fala tem algo familiar.

Discípulo: Meus irmãos, que Jesus esteja conosco, que sua paz permita e revelação daquilo que nos há de melhor! Jesus, em suas prédicas a multidões e em colóquios com pessoas em ambientes mais restritos, não se cansava de alertar-nos sobre as quimeras e tentações do mundo, largas e permissivas portas a nos afastarem dos verdadeiros objetivos da existência terrena. Bens materiais e poder constituem dois dos maiores chamarizes ilusórios do homem! Orai e vigiai, dizia o Mestre. E eu acrescento: olhai bem para dentro de vós mesmos! Deixai cair as máscaras com as quais ocultais vossa verdadeira face! Conhecei-vos e sabereis a companhia espiritual que atraís! Vigiai para que o companheiro desencarnado que vos assiste não seja tão somente deplorável reforço para vossas imperfeições, fascinando-vos a ponto de nublar a visão dos fatos e das coisas. Pobres seres humanos!
                Por outro lado, vezes sem conta olvidais que sois espíritos em corpo de carne e, como tal, igualmente influenciareis outras pessoas com vossas palavras, atos e pensamentos.
                Quanto pagais ao Senhor vosso Deus pelo dom recebido ao encarnar? Por acaso exige Ele pagamento? Então, com que direito cobrais de vosso irmão? Por que vendeis o que gratuitamente recebestes, mercadejando com a santa faculdade que permitiria auxiliar vosso próximo, transformando-vos a existência em fonte de benção e alegria? Estais cobrando pelo intercambio espiritual, semeando desgraça ao invés de luz, afastando aos benfeitores que almejariam convosco trabalhar.

                Alexandre esboça incomodo ao ouvi-lo. O modo de falar, a autoridade revestida de amor.

Discípulo: Dinheiro, poder, sexo inconseqüente... As tentações do mundo constituem chamamentos demasiado fortes, ameaçando a sagrada faculdade de servir como intermediário entre o mundo dos encarnados e dos desencarnados, levando-vos a colocar preço no trabalho obrigatoriamente gratuito, expulsando as entidades evoluídas, que não se prestam a tais mercantilismos, cedendo lugar aos espíritos levianos e ignorantes, bem ao gosto dos que julgam poder servir-se do Mundo Espiritual.
                Grassa por toda Roma o culto do poder e do ouro, a idolatria do corpo, o exacerbamento das paixões; a febre dos oráculos espalha-se, determinando o conluio de espíritos infelizes, encarnados e desencarnados; mentiras camufladas com os ouropéis da vaidade e do orgulho são repassadas aos consulentes, incentivando desatinos. O retinir do ouro e o bafejo inebriante das lisonjas anestesiam vossas consciências! Jesus estará convosco! Lembremos a parábola do Filho Pródigo e tenhamos a humildade de retornar ao caminho reto, sabendo que o pai certamente nos acolherá com alegrias e festas.
                Que o Senhor nos ampare!

                Alexandre precisa falar-lhe! Empurrando, afoitamente solicita passagem até o discípulo.

Alexandre: Senhor!

                Eles conversam e não ouvimos.

Discípulo: Um amigo, companheiro evoluído do além, auxilia-me, pois muito pouco sei por mim mesmo. Como podeis ver, sou humilde, sem estudos e preparação. Tenho tentado evoluir, mas ainda assim deixo muito a desejar... Que fazer! Quando temos boa vontade e disponibilidade para a tarefa, Deus coloca em nosso caminho benfeitores espirituais, mensageiros benditos que suprem nossas carências, permitindo-nos atuar como seus instrumentos!

Alexandre: Sabeis quem são esses espíritos?

Discípulo: Não me preocupo com isso, meu amigo. Bata-me também sejam discípulos de Jesus, dispostos a trabalhar e a servir em seu nome.

                A volta para o campo foi silenciosa.
Márcia Helena compreendia que o amado precisava de um tempo para raciocinar e absorver as informações daquela noite. Também está perplexa com o tema central da palestra! Vendo-o mergulhado em profundas cismas, deixou-o entregue a si mesmo.
Saem Márcia Helena, Alexandre e os demais.


ATO 9.



ENTENDENDO A MEDIUNIDADE.


                Entram Oráculo, Alexandre, Melquíades e Flávia.
                Oráculo fala para Alexandre enquanto Melquíades e Flávia ficam de longe observando.

                Alexandre controla-se nos aposentos de dormir para não descontrolar-se e destruir o primoroso quarto: jogar ao chão as preciosidades e pisotear flores que enchem os vasos. A muito custo controla-se, enquanto a entidade vocifera.

Oráculo: Ingrato! Criatura abjeta! Vais aos cristãos, escuta-lhes as mentiras e absurdos e concordas com eles? Infeliz! Atreves-te a comparar-me com esses espíritos ditos ignorantes? Leio teus pensamentos! Não adianta negar! Quem te auxiliou, quem te tornou rico e famoso?! Eu! És obra minha e, como tal, a mim pertences, a mim! Não penses que me afastarei, antes prefiro destruir-te...

                Alexandre sente náuseas no estômago, entontece-lhe a cabeça e ele vê-se obrigado a deitar-se no frio chão para não desfalecer. Lembrou-se das palavras da amada quando dissera que suas crenças e valores estavam naufragando irremediavelmente.
                É então que nos aposentos, imersos na penumbra da tênue candeia, iluminam-se com safirina luz e Alexandre enxerga duas criaturas avançando suavemente até ele.
                Melquíades sorri enquanto conduz pela mão a lindíssima Flávia. Seus imensos olhos verdes brilham em meio às lágrimas, envolta em alvas vestes, com longos cabelos negros recolhidos em grossa trança entremeada de níveas e perfumadas florezinhas.

Melquíades: Filho, recorda as vezes em que te disse que o corpo físico anestesia o espírito, impedido-o de ver claramente? Imagina a minha vergonha quando, ao desencarnar, encontrei aquela a quem eu chamei de mãe desnaturada, monstro de insensibilidade, criatura sem entranhas, descobrindo que a criatura fora uma pobre vitima também! Julguei-a, repassei-te idéias errôneas... Fiz com que a odiasses! Fui cego! Perdoa-me a ausência de bom senso! Ela, aqui, estendeu-me os braços agradecendo por haver-te criado. Juntos temos velados por ti. Nunca é tarde para reconhecer os erros e efetuar necessária reparação. Reconheceste-me nas falas do orador esta noite, embora temesses aceitar minha presença. Estranhas que eu conheça os ensinamentos de Jesus? Tolice! Jesus veio relembrar-nos das leis: ensinar aos homens que as haviam deixado para trás, desviando-se dos verdadeiros caminhos evolutivos do ser. Agora, essa moça linda e doce, tua mãe, falará contigo...

Flávia: Tens medo, meu filho? Temes as represálias do espírito que acreditavas teu amigo e benfeitor? Asserena-te, pois mudanças de atitudes e pensamentos constituem vigorosos antídotos contra a manipulação de companheiros espirituais menos felizes. Raciocina, meu filho. A partir do momento que te dispuseres a servir a Jesus, entrarás em faixa vibratória que te defenderá das forças do mal e do assédio obsessivo. Teus pensamentos, voltados para o Mestre e sua seara, afastarão os que quiserem atingir-te.
                Os conflitos são perfeitamente normais, inevitáveis e extremamente benéficos, constituindo o prenúncio de mudanças. O medo é saudável, na medida em que defende nossa integridade, mas a mudança, não obstante todas as instabilidades e inseguranças que a acompanham momentaneamente, torna-se imprescindível, entendes?
                Superar obstáculos, derrubar o que já não satisfaz, reconstruir, evoluir... Nesse processo todo, a decisão continua sendo pessoal e intransferível. Somente tu poderás empreender a caminhada, não podemos obrigar-te a nada, somente sugerir, aconselhar, esperar e amar...

                Alexandre e Flávia abraçam-se.
                Saem Melquíades e Flávia.
                A candeia sobre a mesinha de mármore apaga-se. O quarto fica imerso em escuridão. Adormece Alexandre ainda vestido.


ATO 10.
  
POR UMA VIDA SIMPLES E HARMÔNICA.

                Amanhecia de forma fresca e radiante.
                Ligeira chuva na madrugada levara a poeira das plantas e as gotas d’água ainda tremulavam aqui e acolá, quais diamantes.
                Alexandre sai para extensa varanda.
                A lembrança do pai adotivo, fugindo às perseguições dos poderosos, perseverando em sua honradez e integridade, negando-se a compactuar com crimes e desmandos, traz-lhe comovidas lágrimas aos olhos. Como o compreendia agora! Como conseguiria reparar tantos danos?
               
                Entra Márcia Helena com uma cesta de vime com o desjejum para dois e sentam-se a relva.
                No silencio do bosque, somente quebrado pelo murmurar das águas e trinados dos pássaros, conta-lhe.

Alexandre: Ontem, no escuro do quarto, conversei com Flávia, minha mãe, e também com Melquíades, meu pai adotivo! Foi doce, sublime e esclarecedor!
                Ainda não sei nada sobre o Cristo que a encanta, mas isso não mais é um obstáculo ao nosso relacionamento!
                Eu fizera mau uso da faculdade e dos ensinamentos do meu pai, mas decidi colocar um ponto final no vinculo que tenho com a entidade chamada Oráculo! Não se trata de ingratidão, mas de mudança de conceitos! Percebi que os seus conselhos, na medida em que lesam as pessoas, prejudicam todos os envolvidos! Dinheiro? Sim, é importante, mas não ao ponto de coagir-me ao erro! Iremos viver com menos, mas de forma honesta. Retornarei a Roma imediatamente e imprimirei novos rumos e critérios a minha atuação profissional. Se necessário for, imitarei Melquíades, mudando para ter sossego! Recomeçando, alhures, obscura e honradamente!
                Entenda que enfrentaremos dificuldades, meu amor! Minha posição nos cobrará imposições sociais, serei um estranho no ninho! Sinto-me assim mesmo, sendo um cidadão romano com destacada posição social e reconhecido nos melhores círculos da sociedade!
                Vejo-me defrontado agressões verbais, ataques físicos e represálias. Meus clientes não querem saber de questionamentos morais e éticos, somente estão preocupados com o atendimento de seus desejos!
                O Cristo pouco a pouco encontra guarida em meu coração: preenche os espaços vazios e inúteis, deflagra uma premente necessidade de atuar junto ao próximo com desinteresse e amor!
                Agora penso, minha querida, posso terminar em uma prisão infecta ou morto em traiçoeira cilada! Sou repositório de segredos e tramas tenebrosas, resultados dos tempos de convívio e convivência. A partir do momento que nego-me a continuar nas trilhas da devassidão, colocam-me em lado oposto, constituo sério risco para os envolvidos nas deletérias façanhas de antanho!
                (...)

DA PRISÃO DE MÁRCIA HELENA

                Visando atingi-lo, influentes personalidades aprisionam Márcia, acusando-a de compactuar com os cristãos em práticas religiosas proibidas ao Estado., açambarcando-lhe o rico patrimônio.
                Alexandre em visita a prisão.

Márcia Helena: Preocupais-vos com nos bens?! Nada velem para mim... Se Deus permite que nossos algozes deles tomem posse, a única razão plausível deve repousar no fato de não serem necessários... Ou talvez não nos pertençam por direito moral... Quem sabe? Não importa! Somos fortes, saudáveis, cultos... Não precisamos do ouro acumulado por nossos ancestrais para viver! E muito menos para sermos felizes, meu amor!

Alexandre: Mas não é justo! Roubaram-vos!

Márcia Helena: Na realidade, meu querido, nada de material pertence a nós... Muito menos os bens herdados, que foram ganhos com o suor e a força de vontade de outros. Somos somente depositários, cumprindo-nos o dever de bem gerenciá-los e revertemos as bênçãos do muito que temos em prol dos desfavorecidos. Até hoje, iluminada pelos ensinamentos de Jesus, assim tenho feito. A partir de agora, desprovida de ouro, darei do pouco que obtiver com meu trabalho!

Alexandre: Estais presa! Como saireis daqui, se motivos pessoais envolvem vossa prisão?
Márcia Helena: Confiai, meu amor. Confiai em Deus e Ele mostrará o caminho...

                Três dias depois, as autoridades corruptas libertaram a jovem, acreditando que a lição dobraria a cerviz do casal. Retiveram-lhe o imenso patrimônio. Na mesma noite da soltura, acobertados por escura e tempestuosa noite, Márcia Helena e Alexandre abandonavam Roma, decididos a anonimamente recomeçar bem longe dali, em paz e com dignidade.

RECOMEÇO DISTANTE DE ROMA.

                A aldeia era pequenina e pobre.
                Sufocada pelo domínio romano,pagando caros impostos sobre o que produziam, pouco restava aos seus habitantes. Havia fome e doenças, ignorância e desesperança. Receberam-nos com ares de indiferença, avaliando igual penúria por seus poucos pertences e roupas simples.
                Assim que o casal montou a pequenina loja em casa abandonada, quase uma tapera na saída do vilarejo, a natural curiosidade manifestou-se. Nunca haviam visto tantos pergaminhos e vidros.
Conquistados pela alegria e ternura de ambos, trouxeram presentes de boas vindas: queijo, pão, frutas, um pote de mel...
Chegavam timidamente, depositando nas níveas mãos da moça o mimo, retirando-se rápido, embora morressem de vontade de perguntar para que servia toda aquela parafernália.
                Aguardavam os primeiros clientes. Eles não chegavam. Alexandre impacienta-se. Teriam errado de local? Pereceriam de fome? Talvez devessem fazer alguma propaganda ou quem sabe partir para outros lados.
                (...)

                Naquela manhã, trazendo ao colo uma criança, a mulher adentrou a sala impecavelmente limpa pela jovem esposa que também a adornara com flores silvestres colhidas bem cedinho.
                Fitou o moço alto e muito belo com angustiosos olhos, simplesmente estendendo o filho, em muda súplica. Nada mais poderia fazer por ele, embora seu coração de mãe assim o desejasse! Ao antigo feiticeiro de Roma bastou olhar o doentinho para ver os inequívocos estertores de morte.
                Foi então que Alexandre viu Melquíades saindo do aposento escuro, sorrindo, dizendo-lhe com voz que somente ele escutava.

Melquíades: Filho, por que te afliges, julgando não haver solução para o problema? No serviço do Mestre, jamais estamos sós e podemos muito mais com Ele do que imaginas! Vês o frasco à esquerda, na prateleira do meio? Pois bem, acrescenta-lhe o pó que está no frasco abaixo, agitando muito bem. Dá de beber à criança enferma metade do conteúdo. Dormirá profundamente, restabelecendo-se em dias. Quando ela acordar, terá fome... A mãe precisará de bom caldo para alimentá-la e não tem com que fazê-lo...
                Tua esposa está a prepará-lo. Falei com ela antes de vir a ti...

                Assim aconteceu.
                O casal raramente recebia em moedas, pois todos eram muito pobres, contentando-se com alimentos e utilidades de toda espécie. Quando a matéria prima para os medicamentos começava a escassear, providencialmente surgia algum abastado consulente.
                Com o tempo, os dois compreenderam que jamais passariam por privações, muito embora não houvesse luxos ou supérfluos.
                Suavemente Jesus entrou na vida da pequenina comunidade e das circunvizinhanças, através dos ensinamentos ministrados pela exemplificação de Márcia Helena e Alexandre.
                Muitos filhos advieram da feliz união, espalhando-se em novas famílias, todos apaixonados pelo Mestre da Galiléia, todos médiuns.

                Espalhou-se alegria e amor.


                FIM.
  

(...)