quinta-feira, 17 de julho de 2014

Recomeçar, recomeçar e recomeçar



O faraó Cambises e rei da Pérsia durante um ataque epilético e um milênio depois renascendo como Jerônimo Mendonça que sofre de artrose multipla na adolescencia e vida.
Jesus voltando em forma de puríssima luz horas depois da crucificação descendo nos confins da Terra e retornando com Judas adoecido em remorço nos braços.
O soldado romano ao ver a lança com o sangue de Cristo em seus olhos agora curados.
Judas retornando como Joana D’Arc depois de sua recuperação na colônia Casa do Pai.
Centenas de militantes recaidos adormecidos por 1900 anos nas câmaras de magnetização.
Denizard descobrindo-se Allan Kardek (a sua ascendencia) com um grupo de médiuns em compania de Amélie.
Emmanuel dizendo três vezes para Chico ter disciplina.
A faixa de Gaza em brasas, onde eu gostaria de nascer.
Podem ser todos temas de pinturas feitas por um cristão que ordenou uma das Cruzadas
Cujo tempo não poderia ser preenchido na mesma tela
Ou simples frases demonstração do tempo maior, o infinito que Deus (que sempre vai criar) nos empresta para aprendermos o significado de nos amarmos.
E até que eu renasça em Israel
Acho justo imaginar temas de telas que não passam de abstração de um Eu.

Acantiza 10/07/2013, Americana.

 CONTO:

Você pode lembrar-se quem você era, antes que o mundo lhe dissesse quem você deveria ser?


Vou escrever no tempo do Império, quando me diverti com a menina negra Mariazinha. Não foi a minha primeira mulher, porque o meu pai, como um bom Coronel, me levou à casa da Madame e me envolvi com uma de lá, metida à francesa. Mas Mariazinha era melhor, porque a menina, com quem dividi a infância, me amava. Eu gostava de homens também. Foi quando meu pai passou a me odiar. Mamãe choramingava pelos cantos a vida monótona em que se enfiara: casamento cômodo, vida enfadada. Eu sempre precisei demais, nunca estive contente, mas tinha medo...
Treze de maio de 1888. O dia em que a Princesa Isabel assinara a Abolição da Escravatura, data que deu, a ela, a glória e o adeus ao trono e, a mim: adeus àquela encarnação. Morrera ali, vitimado de parada cardíaca, causada por dose excessiva do sedativo. E aquele olhar da enfermeira, só agora posso entender aquele derradeiro e fulminante (como a dose em sua agulha) olhar. Nós fomos marido e mulher em outra vida. Eu tive uma vida de excessos e causei dor à enfermeira, naquela época Eloàde. Ela se desesperou com o marido ausente e ligado as rodas bohêmias francesas, sinais da luz que viria a brilhar naquele século, no pincel de tantos excessivos pintores, e tanto estimulava os sensitivos, como eu era. Kardec ainda não era falado, não tinha ainda escrito o seu tratado Espírita. Tanto desentendimento que seria evitado... tanta paixão para um só corpo: um livro. Os espíritos que ali estavam: deles nós tivemos falta, Eloàde. E trocar o egoísmo por amor.
Eu desejaria falar mais, lembrar mais, mais esse medo: esse medo me domina até que eu perca os sentidos. Acordo e um dos socorristas, dos mais solícitos, está ao meu lado. Ele me diz, com uma cara angelical, que eu preciso repousar. Eu digo que entendo das coisas. Ele diz saber disso. O que me desespera aqui é que sabem de tudo. E onde está Mariazinha então? Por que com ela não posso falar? E quando vou me lembrando da casa antiga, mamãe, papai, do meu irmão... da ganância deles e do egoísmo nosso, tudo toma um tom de entardecer, sinto de novo o meu braço sofrer a agulhada com o líquido fatal e desfaleço... O que estaria acontecendo naquela terra, meu Deus?
O que está acontecendo comigo? A doença não passa com a morte? Disseram-me Ezquizofrênico. Tenho por mim que isso vem me acompanhando desde o tempo da França, talvez mais... foi muito abuso de tudo: abuso de pensar a vida momentânea, não me ligar as coisas da alma, do espírito. Porém o pior que as bebidas, mulheres fúteis e homens também, sexo volátil, o pior mesmo é o meu excesso de mim mesmo.
Na fazenda, o meu adoecer foi até que bom para todos. Meu pai morrera aos poucos de vergonha do filho, justo o mais velho, o nascido para cuidar das terras, agora um louco, que já diziam impotente com as mulheres e solícito até aos galanteios masculinos. Mamãe estava cansada dos meus insultos, já que agora estava mais agressivo e tomara liberdades de acusá-la, na frente das mucamas e tudo. O meu irmão, único e mais novo, nem se fala como sorrira com o “incidente”: teria a herança toda para ele.
Dizem aqui que eu era de outro tempo, e isso soa até como bondade e me torna mais calmo. A equipe socorrista sabe como falar com a gente. Talvez se eu tivesse nascido na Corte? Sabe, eu até fui lá: Rio de Janeiro. Mas senti muito medo daquela modernidade. Quando é que alguém portador de um caráter egocêntrico, que gostava de se gabar de si, poderia fazer isso no meio de tanta gente estudada, versada? Voltei para o interior e para Mariazinha.
Onde ela estaria agora?
Brincando de soslaio com as camélias que o avô recebera do neto e plantara em lugar escondido? Ela, eu não me lembro de outras vidas, não. Também pudera: somos deverás diferentes. Dizem aqui que espíritos diferentes, diferentes escalas evolutivas (como dizem) não ficam muito juntos, não: só com o véu da pele. Eu não entendi muito bem isso. Acho que quando ela não for negra, a gente vá até se casar.
Mas eu penso em Eloàde também, e vai me causando calafrios... como ela virara enfermeira? Então, eu lembro que acertamos que seria assim, naquela França que esvanecia o moderno, seria assim o nosso acerto em terras brasileiras, modernas, e, me dá muito medo... meu braço vai coçando, o “belisco” ardido da agulha, me dá muito medo e perco os sentidos. Alguém me ampara e os pensamentos começam de novo. Disseram-me que estou em um hospital. Acho que nunca vou sair da maca. Você sabe me dizer?