ALEXANDRE, O FEITICEIRO
baseado no conto homônimo de Cirinéia Iolanda Maffei
ditado por Léon Tolstoi.
A ostra, conquanto usufrua o
agasalho da concha e se rejubile na água nutriente do mar, fabrica a pérola, no
âmago de si mesma.
Emmanuel.
Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os
leprosos, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça daí.
(Mateus, cap. X, v. 8).
No
deserto o sol era uma imensa bola de fogo em límpido céu azul.
Os
viajantes envolviam-se nos mantos para protegerem-se do areal.
Entardecia.
ROMA
ANO 30 DC.
Um
oásis.
Ao
longe, tamareiras agitavam-se ao influxo da brisa ardente,
O
reflexo na água ondulando suavemente.
Gritos de
júbilo e suspiros de alívio e alegria.
Finalmente
a linfa cristalina e fresca, a sombra agradável dos leques das palmeiras
O
frescor das gramíneas que circundavam o manancial:
Leitos
para cansados e suarentos corpos!
Acelerou-se
o ritmo da jornada.
Por
encanto até as alimárias apressaram os passos sem que os condutores as
forçassem.
Agora
o sol punha-se no horizonte, tingindo de vermelho e dourado os céus
Em
longas e caprichosas nesgas de luz e sombra.
Rapidamente
os homens armaram as coloridas tendas e acenderam o fogo para o preparo dos
alimentos e a proteção noturna, tudo em meio a palavrório e risos.
Em uma das barracas, estava
aconchegado um velho em postura indolente.
Aguardava
com paciência que os preparativos do acampamento fossem consumados.
Bem
conhecia os privilégios que era alvo.
Breve
as servas adentrariam a agradável penumbra para servir-lhe a ceia com
generosidade e capricho.
Tinha
o corpo magro.
Alquebrado
pelo natural peso da idade.
E
imprimia nos atos a sábia indiferença e naturalidade do hábito adquiridos com o
passar dos anos.
O velho Melquíades suspira,
espera a chegada de seu protegido e aprendiz.
Monólogo.
MELQUÍADES
Onde estará? Provavelmente entre as mulheres, em
inúteis conversas, gracejando, divertindo-se, quando deveria preocupar-se com
coisas mais importantes...
Um jovem de elevada estatura e
extrema beleza física afastou os panos que vedavam a entrada da tenda,
exclamando, entre irônico e bem-humorado:
ALEXANDRE
Como sempre, estais a censurar-me, mestre!
Julgais
que me envolvo com bobagens, todavia zelava tão somente por vossos
interesses....
Vede
o que achei junto à fonte de águas, por detrás da enorme pedra!
Felizmente outros olhos curiosos não a descobriram
antes!
Exibia
planta de exótica aparência, cuidadosamente envolta em trapos de linho.
O
agastamento do ancião desapareceu de imediato.
Com
surpreendente disposição, deslizou pelas almofadas, acercando-se do rapaz,
retirando-lhe das mãos morenas e fortes o magnífico espécime botânico, os olhos
brilhantes de curiosidade e expectativa.
Melquíades: Trata-se de uma raridade!
Melquíades busca nervosamente por pergaminhos e
papiros e localiza um.
Melquíades: Aqui está, Alexandre! Depressa, depressa... Vês? È
ela sem dúvida alguma! Aproveitá-la-emos com muito cuidado e com certeza nos
fornecerá milagrosos elixires... Ou será melhor em forma de poção? Ungüentos,
talvez?
Alexandre: Mestre, sabereis o que é melhor... Contudo, estáveis
a condenar-me novamente, como se eu desse motivos para isso!
Os olhos do velho
enterneceram-se. Sua voz, comumente incisiva e autoritária, assumiu carinhosas
conotações.
Melquíades: Temo por ti, meu filho! Necessitas conscientizar-se
de que, em nosso trabalho, somos alvos de mil tentações. Muitas dessas
encontram respaldos em nossas imperfeições espirituais. Gostaria que fosses
menos atraente, de que não impressionastes tanto as mulheres... Sem falar no
fascínio que tem pelo poder, pelo dinheiro... Conheço-te... Corres o risco de
não cumprir a tarefa que te candidatastes ao renascer. Compreendes?
Alexandre: Não com alcance que vós conseguis perceber.
Melquíades: Esta caravana... Vejamos o caso dela... Grande,
luxuosa, com mercadores importantes; muitos servos e escravos... Prestastes
atenção no chefe? Acercou-se de ti, não foi assim? Que promessas fez?
O jovem aprendiz olhou surpreso
o velho. Como adivinhará o que acontecera junto às águas.
Melquíades: Sei que é bem difícil resistir quando nos acenam com
poder, dinheiro e sexo, a menos que os tenhamos substituído por coisas de maior
valor, as do espírito... E a consciência do dever fale alto em nós. És o filho
que não tive... Conheces a história... Retirei-te de uma ruela em grande
cidade... Encontrei-te junto à Porta em que as infelizes abandonam os seus
rebentos. A riqueza dos panos que te envolviam reforça-me a convicção de que
ilustre mãe te colocou no mundo...
Alexandre: Contai-me, mestre, uma vez mais! Rebuscai a memória
traiçoeira, dela extraindo minucioso relato! Um dia, pressinto-o, tais
informações serão de grande valia.
O velho cerrou os olhos
mergulhando-os no passado. Instantes depois, com voz pausada, iniciou o
monólogo.
Melquíades: Roma é uma bela e estranha cidade, meu filho. Rica e
miserável... Dissoluta e pura... Selvagem e culta... Contrastes extremos! Um
dia, conhecê-la-ás melhor e poderás compreender-me... Naquela noite voltava eu
de atendimento a paupérrimo doente, em quem as tisanas e poções não haviam dado
jeito, quando junto à Porta dos Enjeitados, escutei brando vagido, quase
inaudível não fosse o grande silêncio que envolvia a cidade adormecida. Naquele
momento, enorme lua logrou livrar-se das nuvens que a ocultavam, clareando o
local e lá estavas tu! Pobrezinho! Choravas tão baixinho! Contudo, a
fragilidade do corpinho quase em forças salvou-te! Tivesses bradado pela
desnaturada mãe em altos choros, atrairias mais rapidamente os cães famintos
que perambulavam por ali. Abaixei-me, alcançando um galho seco jogado ao solo,
protegendo-me dos pobres e agressivos animais que já se achegavam, espantando-os
vigorosamente, trêmulo de medo e indignação. Cruel mãe e desatinado pai os que
te lançaram ao monturo!
Silenciou as emoções de outrora
sensibilizando-o. Depois, prosseguiu:
Melquíades: Estavas envolto em preciosa manta, bordada com fios
de seda e enfeitada com fitas e rendas. Coisa muito linda e delicada, ainda
recendendo suavemente a flores e madeira. Espera!
Levantou-se abrindo pequeno baú
escondido entre as roupas de viagem de onde retirou amarelada peça sob os
olhares ansiosos de Alexandre.
Melquíades abriu a coberta
pequenina, revelando o primoroso bordado e, a um canto, as iniciais em relevo:
MH.
A seda dos bordados ainda
rebrilhava à luz da candeia. O rapaz adiantou-se, tocando o tecido
receosamente, como se o contato pudesse queimar-lhe as mãos.
Melquíades: Que linda criança eras! Mais calmo, constatei que
contavas poucos meses de nascimento. Ao cresceres, percebi tua inteligência e
sensibilidade! Maravilhava-me com o teu progresso intelectual.
Alexandre: Por que saímos de Roma? Éreis conceituado, bem sei,
tínhamos conforto, não vos faltavam clientes para os remédios, alguns riquíssimos...
Melquíades: Filho, um homem é responsável pelos atos que
pratica, não lhe sendo permitido alegar ignorância das leis divinas,
principalmente porque o conhecimento aumenta e valida essa responsabilidade.
Não te esqueças! Infelizmente, minha fama espalhou-se a revelia de meus
desejos, mercê das curas indevidamente consideradas milagrosas. O ônus não se
fez tardar: romanos poderosos viram em mim um instrumento que lhes permitiria
consolidar ambições e satisfazer paixões, procurando-me com nefastos planos,
sombrios intentos. Recusei-me a negociar e conspurcar o trabalho e a faculdade
de intercambio espiritual, sendo lançado a infecto calabouço. Não te lembras
porque eras pequeno e a ama-de-leite cuidou de ti enquanto eu amargava na
masmorra. Libertaram-me e antes que as coisas piorassem, embalei uns poucos
pertences pessoais e cai no mundo, levando-te comigo. Temos perambulado desde
essa época! Tenho orado para que essa caravana deixe-nos em longínquas terras,
onde finalmente sossegarei.
Retirou das mãos do silencioso
rapaz a manta, depois, abraço-o longamente.
Melquíades: És o filho de meu coração, Alexandre. Aquele que
dará continuidade à minha obra... Durante anos preparei-te... Acima de tudo,
burilando teu caráter, fazendo de ti um homem de bem. Espero tê-lo conseguido!
Agora, meu caro, durmamos! Sinto-me exausto e amanhã muito viajaremos!
Não houve amanhã para o ancião.
As areias do deserto serviram-lhe de túmulo.
ATO 2.
NA CIDADE DOS CÉSARES 50 DC.
Numa pequena
casa uma lojinha de poções e filtros.
Adversários
incômodos? Maridos indesejados? Esposas não amadas e controladoras? A bom e
sonante preço, tudo se resolve!
Assim as
habilidades de Alexandre espalharam-se rapidamente.
Aos poucos as
luzes vão se mudando no palco e nos vemos num formoso e nobre palacete.
Alexandre
sente-se entorpecido. Poderosa energia envolve-o e uma voz autoritária e
irônica sussura-lhe aos ouvidos.
Oráculo (fora de cena): Deixa-me falar, deixa-me dizer o que
pretendo! Far-te-ei uma celebridade! Profetizarás, saberás coisas do passado e
do futuro... Inspirar-te-ei! Serás rico e famoso como sonhas! Trabalharemos
juntos! Dar-te-ei o mundo meu jovem!
Estaria
louco? Mas a voz continuava, agora harmoniosamente e doce.
Oráculo (fora de cena): Queres uma prova de meus poderes? Justo!
Presta bem atenção: amanhã um romano influente chegará ao teu estabelecimento,
um pouco antes da metade do dia. Levará ao pescoço pesada candeia de ouro,
adornada com precioso medalhão representando o deus Marte. Tratar-te-á com
arrogância, como se fosses um servo qualquer, mas não deves humilhar-te, embora
o desaforado jogue na mesa pesada bolsa de ouro que te fará brilhar os olhos.
Mantenha indiferença! Desdenhando a paga principesca. Conduzi-lo-ás à saleta
azul, onde com ele sentarás à mesa. Eu falarei por tua boca, servir-me-ás de
instrumento dócil, passivo! Se me obedeceres, não te arrependerás!
Singular
letargia envolve o jovem, e ele adormece pesadamente. Estranhas figuras e
lugares povoam-lhe os sonhos e, mesclado a tudo, a imagem do pai e tutor, em
vão tentando lhe falar. Embora amasse Melquíades, queria fugir, afastar-se de
seus conselhos.
O
sol arde nas pedras do pátio.
O
homem entrou.
Era
ele, sem dúvida, o medalhão confirma!
Arrogante, jogou sobre a mesa
grande bolsa.
Romano: Por um filtro, um venenoso filtro de fulminante efeito!
Alexandre
o reverência convidando-o a passar para uma saleta azul. Quando vai pronunciar
as primeiras falas, intensa onda vibratória o envolve. Ouve-se a própria voz de
Alexandre, mas não são suas as frases contrapostas com a voz do Oráculo.
Alexandre: Por que quereis matá-la, nobre senhor?
Romano: Isso não te diz respeito, mago! Vejo que és muito jovem, o
que não justifica um interrogatório com tamanho atrevimento! São negócios!
Basta que eu te pague pelo serviço!
Alexandre
solta um estrondoso riso transfigurado.
Alexandre: Ah, sois orgulhoso, magnífico senhor... Poderias
deixar-vos cair em irremediável erro, sinto-me terrivelmente tentado a
fazê-lo... No entanto, o orgulho e a vaidade não são atributos vossos
somente... Há meios muito mais sutis e inteligentes para conseguir o que
almejais... Raciocinando melhor, compreendereis que estais condenando à morte a
pessoa errada?... Mas, se o desejais... Que veneno pretendeis?
Romano: Quem sois, afinal? Certamente assessorais o mago! Agora
percebo que alguém fala por sua boca, provavelmente um espírito! Consegue
ler-me os pensamentos mais oculto! Podeis prever o futuro?
Um
afirmativo sinal de cabeça do médium Alexandre.
Romano: Tenho que eliminá-la! Até agora era-me vantajoso tê-la como
amante, contudo tornou-se perigosa, muito perigosa! Se revelar os meus segredos
serei levado à morte por traição ao Estado. Além disso, já não possui a
esplendorosa beleza de anos atrás e o fogo da paixão gelou-me nas veias. Não
aceita o fim do nosso relacionamento! Ameaça-me, entendeis? Que posso fazer em
tais circunstâncias?
Alexandre: Conheceis muito bem os laços de parentescos de vossa
amante com o imperador! Arriscar-vos-ei a tanto? Tendes a ponderar que, vezes
sem conta, serviu ela a Roma como intermediária em secretos conluios, usando o
leito de seda para a consecução dos interesses do império e mesmo os de cunho
de interesse pessoal do imperador... Criatura perigosíssima, ardilosa, bem o
dissestes! Acreditais seu assassinato será ignorado? Jamais! O divino César
moverá céus e terras para descobrir o autor da façanha. Considerará um atentado
à sua vontade e ao bem do Estado, pois perderá uma das mais eficientes espiãs!
Faremos melhor! Meu companheiro fornecerá...
Alexandre
sai com o romano.
O
prestígio do jovem bruxo estava selado.
O
pretenso profeta lançava luzes ao dia-a-dia dos romanos, estimulando-lhes as
viciações, a vaidade, o orgulho, a inveja, fascinando-os com a conversação
maliciosa e os conselhos astutos e nada éticos.
ATO 3.
A forma indiferente com que Alexandre se conduzia nas questões amorosas pessoais, exarcebava a vaidade e o orgulho femininos.
AS FESTAS DE ROMA
As mulheres
levavam Alexandre às reuniões sociais, subtraindo-o à obscura plebe, lançando-o
em uma sociedade inconseqüente e materialista.
Sua presença
tornou-se o ápice das festas entretendo e seduzindo. À aura de mistério e poder
juntava-se a beleza física, como temera Melquíades.
O
moço embarca de corpo e alma na atordoante atmosfera de Roma, secundado pelo
espírito, o Oráculo, ligado a ele pelas afinidades vibratórias.
ALEXANDRE
Deixar Roma,
jamais! Deixar a minha notoriedade e assédio para seguir aos princípios do
mestre, meu saudoso pai... Não, nunca!
As
festas sucediam-se.
O
verão atingia Roma com uma onda de calor incomum e os patrícios se ausentavam
para os campos, onde a vegetação e as águas minoravam a canícula.
Alexandre
fora refugiar-se numa dessas casas.
Eras convidado ilustre acolhido em uma das famílias dos patrícios.
Eras convidado ilustre acolhido em uma das famílias dos patrícios.
A forma indiferente com que Alexandre se conduzia nas questões amorosas pessoais, exarcebava a vaidade e o orgulho femininos.
ATO 4.
NOS CAMPOS DE ROMA 50 DC.
Afastada
da via, mais ainda assim visível, por antigas e magníficas árvores, encantadora
vivenda desperta atenção. Uma casa envolta em um ar de mistério e reserva
intrigantes, longe do bulício de hospedes e convivas.
Alexandre: Quem habita a casa?
Patrício: Uma jovem de nobre família romana nela reside, meus caro.
Desde que os pais e a única irmã morreram ela tem vivido só, afastada do
mundo. No começo a convidávamos, mas
acabamos por desistir ao constatar que se desculpava sempre... Talvez
devêssemos ter persistido... Trata-se de uma moça belíssima! Seria disputada em
nossas festas, dilacerando corações!
Alexandre: Julgais que seria de bom alvitre uma visita minha, a
pretexto de estabelecer bom relacionamento com os vizinhos? Afinal, os convites
recusados não partiram de minha pessoa e posso muito bem omitir o fato de
ter-vos questionado a respeito...
Patrício: Não vemos nenhum inconveniente! Se ela consentir em falar
contigo, meu caro... Será difícil...
Uma
alma agitada observa a casa durante dias
Sentado
sob as copas, entretido aos pergaminhos,
Na
solidão e tranqüilidade do refúgio, dedicadas à meditação e ao estudo,
Retorno
às origens abandonadas devido ao furor festivo dos romanos,
Entre
os raios de sol que atravessam a massa compacta e luxuriante das folhas,
O
frescor da mata.
Suave brisa e perfumosos odores
proporcionaram-lhe o tão esperado encontro.
Uma
mulher em claras vestes e longos cabelos loiros.
Deitada
em pequena elevação de macia relva, adormecia.
Contempla-a extasiado.
Os
sedosos cabelos espalhados sobre o improvisado leito,
Adornados
por delicada guirlanda de flores.
Um
chapéu abandonado ao chão.
A
noite desceu lentamente, sem lua ou estrelas no céu de escuro azul.
Ela
ri baixinho.
Tateia
na escuridão, provavelmente procurando o chapéu.
Repentinamente, embora se
mantivesse imóvel, a moça percebeu-lhe a presença e seus dedos encontraram-no.
Não
mostrou temor, limitando-se a indagar, com voz calma e suave.
Márcia Helena: Que fazeis aqui, senhor? As terras pertencem-me e
estais invadindo...
Alexandre: Eu... Quisera... Eu... Estavas dormindo...
Márcia Helena: Não são necessárias explicações, senhor! Melhor
sigais vosso caminho e não retorneis, por gentileza, pois apreciamos solidão e
privacidade.
Olhos nos pergaminhos deixados
sobre a relva.
Márcia Helena: Não esqueçais vossos instrumentos de estudos. Deduzo
sejam preciosos, pela antiguidade que demonstram... Levai-os!
A jovem desaparece rapidamente
na noite.
Linda!
Postura de rainha e semblante de
anjo. Educada com esmero. Natural e gentil.
De
que cor seriam os olhos que não conseguira vislumbrar à luz do luar?
Patrício: Descompromissada, extremamente rica... Herdeira
única de terras e significativo patrimônio... Os familiares arrebentaram-se de
encontro a recifes, afundaram junto da luxuosa galera! Ela, única ausente da
embarcação, optara por viver no campo, longe do bulício de Roma!
Alexandre: É doce, serena e calma, não julgo que algo a
atormente! Que segredos oculta tão bela criatura?
Durante semanas dispôs buquês de
flores na varanda, em frente ao quarto de dormir da moça.
Alexandre: Onde está o Oráculo? Creio que o pensamento
apaixonado na moça me secunde o desenvolvimento mediúnico!
Amo-a tenho certeza! Não consigo
a afastar do pensamento...
Encontrou-a.
Vestia azul, os compridos e
louros cabelos trançados com fitas de mesma cor.
Seus olhos eram também azuis,
orlados de longos cílios escuros.
Uma
faixa de seda cingia a cintura.
Era
ainda muito jovem, nas mãos flores colhidas pelo caminho.
Olharam-se.
Um irresistível impulso: o rapaz
aproximou-se, envolvendo-a em apaixonado abraço, colando os lábios à trêmula
boca.
Natural. Longo, terno e doce
beijo, à sombra das enormes árvores.
Recolheram-se
aos luxuosos aposentos, onde se entregaram a mil considerações e hipóteses.
Manha
seguinte.
Entra
Oráculo.
Oráculo: Que fazes? Com tanta mulher à tua volta? Escolhes
justo uma que vive isolada do mundo! Bem sei do segredo que aquele coração
guarda, mas não te revelarei nada, ouviste! Nada! Não pedistes contanto darei
de graça o que cobra em ouro dos outros, um aviso: afasta-te dela! Não é para
ti! Em nome de uma loucura denominada amor fará com que perdas todos os
privilégios, luxos, comodidades, riquezas... Serás desprezado, perseguido...
Alexandre: Somente agora me procuras? Onde estavas quando te
chamei?
Oráculo: Não deixaram que me aproximasse de ti! Aquele
intrometido, o velho que te ensinou misturar essa água suja que vendes!
Malquíades! Tu somente pensavas na moça, não tive acesso aos teus
pensamentos...
Afasta-te dela, repito! Ficarás
pobre, perderás teu prestígio, sofrerás humilhações e ingratidões... Serás
perseguido e os deuses fulminar-te-ão com a ira dos céus!
Desaparece.
Entra Márcia Helena.
Márcia
Helena: Encontro-me enamorada de ti. Mas tenho restrição a tua atividade
profissional! Mago de renome? Hábil com filtros e poções, mercador do além...
É verdade?
Alexandre: Como negar?! Fui abandonado e sinto necessidade de
reconhecimento e admiração de uma forma avassaladora! Tenho sede de
prestígio... Uma ambição desenfreada! Melquíades encontrou-me na porta dos
enjeitados! Eu somente gostaria de encontrar minha mãe e mostrar-lhe que
tornei-me alguém! Sinto remorso... Sim! Desde que a conheci, sinto remorso!
Sinto-me envergonhado! Tenho
usado os meus dons e conhecimentos para incentivar fantasias e paixões, atento
contra o livre-arbítrio e a existência das pessoas... Onde seputei nobre e
dignificante educação recebida? Onde naufraguei os conceitos éticos e morais
que deveriam nortear a minha vida?
Márcia Helena: Dizeis que fostes retirado da Porta dos Enjeitados?!
Em Roma?! Mencionastes também ricas vestes e uma manta, uma manta bordada com
fitas e rendas preciosas... Meu Deus, por acaso nela havia um holograma?!
Alexandre: Sim, no canto direito. MH, para ser exato,
entrelaçados...
Márcia Helena: É a minha manta, a minha manta!
Desfaleceu antes que ele pudesse
ampará-la.
Alexandre: Peço-vos, em nome dos deuses, contai-me a verdade.
Sabeis quem sou? Toda a minha vida quis conhecer a mulher desnaturada que me
colocou no mundo, atirando-me ao monturo para ser comido pelos cães... Conheceis
minha mãe, certamente, até dizeis que sois dona da manta...
Márcia Helena: Não a chameis de desnaturada, porque não lhe
conheceis a história de dor e de sacrifício! Jaz no fundo do mar, sob toneladas
de água, mais sei que vela pelo filho, guiando-vos até mim.
Levantando, a moça caminha até
um móvel dele retirando preciosa miniatura.
Márcia Helena: Essa é vossa mãe, minha irmã! Nosso pai adotou-me
quando ainda era bem pequenina, praticamente de colo. Ambos, o consangüíneo e o
adotivo, serviam como elevados oficiais do exército de Roma. Meu pai verdadeiro
sucumbiu em batalha, delegando ao amigo e superior a tarefa de colher-me como
filha, pois minha mãe havia falecido também. Vede! Diferimos fisicamente!
Contudo, embora o mesmo sangue não nos corresse nas veias, éramos almas irmão,
afins e amorosas. As iniciais pertencem-me: Márcia Helena. Na época minha irmã
já era uma menina linda e sonhadora. Quando eu contava seis anos de idade, a
tragédia visitou-a na figura de um homem belo e inescrupuloso. Embora criança,
lembro-me perfeitamente... Relatar-vos-ei a história de Flávia, vossa mãe.
***
Sai Alexandre.
ATO
5.
Monologo.
MÁRCIA HELENA ENQUANTO VIA
JESUS SOBRE AS PRAIAS PALESTINAS.
Márcia Helena: Os exércitos romanos haviam conquistado grandes
regiões, dominando povos e espalhando o império por todos os lados. A nação
hebraica, como tantas outras, sucumbira ao seu julgo. As principais cidades
ostentavam as marcas da cultura de nossa gente. Designado para uma delas, o meu
pai adotivo mudou-se para Palestina, levando consigo a esposa e as duas filhas.
Meu pai não aceitava de forma alguma os hábitos
devassos da sociedade romana, a permissividade que medrava nas melhores
famílias patrícias.
As facilidades excessivas minavam o espírito,
enfraquecendo-o. Assim pensava papai. As refeições em casa eram equilibradas e
frugais, as bebidas controladas, as festas, em moda na época e que descambavam
em orgias, constituíam terminante proibição.
Nossa convivência social era limitada a reuniões com
seleto grupo de amigos, música, leitura de poemas selecionados... Levávamos
essa existência feliz e produtiva: estudávamos, bordávamos, nos dedicávamos à
música e à leitura, passeávamos pelos jardins de nossa residência...
Conto-vos esses detalhes para que percebais
determinados aspectos do caráter de meu pai adotivo. Aqueles eram dias de
muitas mudanças, que ficariam indelevelmente marcados na história da Humanidade
e em nossos corações, embora não o soubéssemos na época.
(...)
Os judeus ansiavam por um salvador, profetizado pelas
Sagradas Escrituras como o Filho de Deus, aquele que estabeleceria na Terra o
seu reinado e que, por extensão, permitiria que exercessem a supremacia sobre
os demais povos.
(...)
Para desespero de muitos que o esperavam com a
magnificência de um rei, aos moldes terrenos, ei-lo que surge humilde e
amoroso, com total e irrestrito desapego aos bens materiais e ao poder!
Recomendou o amor aos inimigos...
Aconselhou que se desse a César o que de direito e a
Deus o coração.
O coração onde Ele deve ser adorado em espírito e em
verdade, único tabernáculo resistente aos embates e vicissitudes do tempo...
(...)
Acolheu os pequeninos e condenou os hipócritas...
Pontificou o perdão, a humildade, a tolerância, a
paciência, o amor...
Nós conhecemos esse homem pessoalmente!
Adorávamos andar pela praia, bem cedinho, recolhendo o
que a maré lançara durante a noite às alvas areias: conchinhas, peixinhos ainda
vivos que devolvíamos ao mar, pedrinhas e, de vez em quando, objetos, alguns
bem interessantes. Acompanhávamos sempre uma serva, atenta a tudo e a todos.
Naquele dia as areias estavam coalhadas de gente,
vindas de muitos pontos, alguns distantes. Os olhos verdes de minha irmã
surpreenderam-se com a pobreza e o sofrimento daquelas criaturas. Lembro-me de
vê-la chorar! Quantos doentes, quantas deformidades, quantas criancinhas
desnutridas ao colo de suas esquálidas e entristecidas mães! Acomodamo-nos à
distância por ordem de nossa guardiã, muito embora desejássemos misturar-nos ao
povo.
Os barcos voltavam da pesca. Em um deles, um homem
destacava-se. Fechando os olhos, vejo-o ainda: de altaneiro porte, estava à
frente de uma das embarcações e o sol incidia em cheio sobre Ele; os olhos eram
claros, incomuns entre os de sua raça; os cabelos, cor de mel, daquele tom
incrível que adquire quando o escorremos do pote, como se absorvesse a luz e a
refletisse; o sorriso era doce e ao mesmo tempo enérgico e parecia dirigir-se a
cada um dos presentes em especial, retirando-nos do anonimato; as mãos fortes e
bronzeadas não tinham a rudeza daquelas que trabalham braçalmente; os dentes,
alvos e perfeitos, entremostravam-se através da barba bem cuidada e à moda
nazarena.
Era belo, muito belo, e, à sua visão, nossos
coraçõezinhos dispararam.
Senti em minha mãozinha a de vossa mãe e ela estava
trêmula...
(...)
Os pés descalços mergulhados nas espumantes ondas,
caminhando de encontro à multidão subitamente silenciosa e expectante. Na minha
visão infantil e acostumada às crenças religiosas romanas, acreditei fosse um
deus!
Jesus, assim o chamavam. Subiu em uma formação rochosa
e de lá sua voz dominou a praia, milagrosamente amplificada. Contava histórias,
lindas, singulares e singelas histórias, cujo o alcance, eu restringia ao meu
entender de criança. Muitos choravam, pois Ele penetrava o recôndito de suas
almas em sofrimento, levando-lhes consolo e esperança, dissipando a ignorância,
mal maior da Humanidade. Quando calou, misturou-se à turba, acolhendo os
enfermos, curando-os com o toque de suas formosas mãos.
Estávamos encantadas!
-“Deixai vir a mim as criancinhas...”
Voltamos aos mesmos lugares nos dias seguintes! Foi
fácil convencer a serva que deveríamos segui-lo. Não tínhamos a noção do que
estávamos aprendendo e a importância para nossos espíritos imortais...
Quando o Rabi e seus discípulos partiram, a praia
parecia haver perdido seu encanto... Vazia e desolada... Em nossa puerilidade,
não compreendíamos que ela era tão somente o cenário ideal para magnificência
do Mestre.
Entra
Alexandre.
Márcia Helena: Crescemos. Minha irmã tornou-se uma linda jovem, de
longos e negros cabelos e estupendos olhos verdes. Infelizmente, seu
coraçãozinho ingênuo e sonhador interessou-se por garboso oficial romano,
famoso por suas conquistas amorosas e temido por seu caráter leviano e
inconseqüente.
Nosso pai, austero e probo,
indignou-se com a escolha de Flavia, dispensando o moço sumariamente, ignorando
as lágrimas de vossa mãe. Talvez, se tivesse conversado, explicado... Quem sabe
permitido o namoro para que ela mesma, devidamente protegida pela família,
acabasse decepcionada com o caráter do jovem... Acredito que o rigor foi
exagerado, impedindo que ela acatasse os conselhos e ordens com menos dor e
revolta, impedindo que ela despertasse da primeira paixão com seqüelas menos
desastrosas.
Foram meses de relacionamento às
escondidas, com encontros em lugares sigilosos, incluindo trocas de juras e
promessas de amor eterno. Nossa ama percebeu o aumento do volume do ventre da
mocinha que criara como filha, apavorando-se. O oficial, temendo a reação de
nosso pai, seu superior hierárquico, tratou de rapidamente conseguir
transferência para local bem longínquo.
Alguns dias antes do nascimento
o segredo guardado com tamanho cuidado fora revelado por um subordinado do
quartel em discussão com meu pai. A notícia teve o efeito de uma explosão! Mal
nascera a criança, nosso pai encarregou um dos servos, que considerava esperto
e confiável, de levá-la a Roma sigilosamente, entregando-a nas mãos de idosa
parente, senhora de poucos recursos que concordara dela cuidar em troca de
determinada soma de dinheiro e de uma pensão mensal, que meu pai prometeu
enviar religiosamente.
Vosso avô não pretendia
eliminar-vos! Perderam-no o orgulho em demasia, o temor do escárnio, a
vergonha... Quem somos nós para julgá-lo?
Embora desesperada, Flávia
conformou-se, acatando as arbitrárias decisões paternas, até porque nossa mãe e
a ama prometeram que um dia voltariam a Roma e, vendo o netinho crescido e
lindo, o coração do avô abrandaria, concordando em recebê-lo como membro da
família, perdoando-lhe pelos desgostos que causara.
Quando partistes, minha
irmãzinha enrolou-vos na mesma manta que me envolvera ao ser levada para o lar
adotivo e que ela zelosamente guardara entre seus pertences, dizendo:
- “Para dar sorte filhinho! Logo
nos encontraremos em Roma! Perdoai ao avozinho, ele é uma boa criatura! Somente
está muito zangado comigo. Jesus ensinou-nos a paciência, a fé, a esperança...
Tudo dará certo e meu coração jamais se afastará!”
O que aconteceu na viagem eu
somente saberia tempos depois, ao voltar a Roma, pela boca da escrava que meu
pai destinara ao vosso aleitamento. Havia gasto tudo o que o canalha lhe dera
em troca de seu silêncio e o remorso atroz atormentava-a. Repartiriam o
dinheiro, seriam ricos, livres, jamais encontrados... Ela cedera à tentação;
deixaram a criança na Porta dos Enjeitados!
Enquanto isso tudo ocorria, nós,
na Palestina, de nada sabíamos, julgando-vos em segurança em Roma!
Meu pai decidiu partir em
regresso com a família, deixando-me adoentada em Jerusalém. Ele
havia sido nomeado para ambicionado posto na capital do império.e eu não
poderia agüentar a travessia. Meu querido, não houve da parte deles descuido ou
desamor: eu seguiria mais tarde, assim que passasse o perigo de contágio, com
servos da maior confiança.
Furiosa tempestade em alto-mar
enterrou minha família no fundo das águas.
Abalada, empreendi a travessia
de regresso para encontrar o meu sobrinho. A velha senhora surpreendeu-se com
minha visita, principalmente porque ignorava que nosso pai houvesse ocultado de
seus familiares o fato de ela jamais ter recebido a criança!
Achava-me só no mundo! Sem
família e nenhum afeto sincero. Pensei em casar, mas logo me desiludi, pois os
pretendentes visavam o imenso patrimônio que meu pai havia me deixado como
herdeira única. Tornei-me alvo de interesses espúrios. Afastei-me, pois a idéia
de realizar uma união alicerçada em conveniências econômicas ou tão somente em
carências afetivas repugnava-me. Deliberei permanecer sozinha até aparecer o
eleito de meu coração.
Roma resumia-se a festas e
devassidão. Tive medo da solidão que me rodava, mesmo quando em meio a muitos!
(...)
Márcia Helena: O homem da praia, não obstante fosse muito jovem
quando o conheci, jamais fora olvidado! Sua doutrina luminosa, verdadeiro
manancial de serenidade e ternura, despertava em mim o desejo de
relacionamentos embasados na real afeição, no amor por Ele preconizado. Jesus
perecera na cruz, sempre exemplificando amor e perdão, e eu julguei por muito
tempo que haviam sufocado a semente plantada com tanto sacrifício e dedicação,
principalmente ao estado de isolamento em que vivia, mesmo quando meus pais
adotivos eram vivos. Para minha surpresa, em Roma os seguidores estavam por
toda parte, embora em sigilo, devido às sérias restrições do Estado. Comecei a
freqüentar as reuniões evangélicas, tornando-me cristã.
Fora um dos discípulos do Mestre
que curara-me da moléstia que me impedira de viajar com a família! Como eu
pudera esquecer das palavras do servo do Mestre durante minha convalescença,
uma vez que ele me visitava religiosa e diariamente?
Contrastavam com sua
simplicidade e rude aparência, os conceitos profundos sobre imortalidade da
alma, destinação do ser sobre a Terra, caridade... Participando dos encontros
cristãos, reencontrei tais conceitos nas palavras daqueles que propagavam a
doutrina de Jesus na cidade dos césares!
A agitação da metrópole
afligia-me; reuníamos em locais secretos, resguardando-nos das proibições
estatais, arriscávamo-nos à prisão, tortura e morte; sentia-me sozinha em meus
temores, conquanto os companheiros da crença. Um dos anciãos, constatando-me a
exacerbada ansiedade, aconselhou a transferência para o campo, onde gozaria de
maior tranqüilidade e menos pressão social, já que se tornara ponto de honra
para muitos casar-me a qualquer custo. Assim, vim para esta encantadora
vivenda, pertencente à família e herdada por mim, transformando-a em abençoado
refúgio, dedicando-me ao estudo e à beneficência. Acabaram por deixar-me em
paz!
Não pense que eu abandonei as
buscas! Infelizmente, a amada criancinha desaparecera, envolta em profundo
mistério. A razão sinalizava que estaria morta, mas meu coração jamais deixou
de esperar que ela aparecesse!
(...)
Alexandre: Vós não sabeis o quanto minh’alma está alegre em
saber a verdade! Dor maior que o abandono daquela que nos gerou não existe!
Impede-nos de amar, pois passamos a encarar as criaturas como profundamente
capazes de rejeitar! Culpei-a, fui injusto, mas o destino propiciou nossa
reunião para que tudo se esclarecesse... Sinto-me em paz! Tendes idéia do que
está acontecendo? Da beleza deste momento e do que relatastes? Tempo e espaço
perderam sua importância, os elos de amor reataram-se! Muito pequena,
participastes da trágica história de minha mãe, agora, conhecemo-nos,
amamo-nos! Incrível! Pelos costumes de nossa época, seria normal que
estivésseis casada e com filhos, todavia esperastes, pressentindo que o amor,
aquele que une almas afins surgiria!
O rosto de Márcia
entristeceu-se.
Márcia Helena: Somos, no entanto, muito diferentes, meu querido.
Será que o amor bastará para que superemos as diferenças? Viveis do comércio de
vossas faculdades; mercadejais com o que o Mestre ordenou de graça ofertar,
pois nada vos custou; manipulais e criais fórmulas que deveriam servir para
curar, todavia são usadas para destruir as pessoas e constranger-lhe o
livre-arbítrio. Sabei que muitos dos que se denominam cristãos possuem
semelhante dom? E que Jesus mencionou, vezes diversas, os fenômenos de
comunicação com o mundo dos que se foram e até deles participou, conforme
narram os Evangelhos? Eles, entretanto, usam suas faculdades para o bem e para
a evolução das criaturas! Assusta-me o fato de que utilizeis algo tão sublime,
redentora oportunidade de serviço em favor do próximo, para riqueza e
engrandecimentos próprios.
Dissestes que uma entidade
assessora vossos trabalhos, aconselhando os consulentes e até prescrevendo
fórmulas?!... Que tipo de criatura recomendaria tais desmandos e tamanha
insensatez? Perdoai-me a franqueza, mas não posso omitir-me em relação a
tamanhos absurdos! Há muito a consciência procura alertar-vos... Sabeis que os
frutos de vossas ações são amargos e venenosos, indicando a qualidade da árvore
que os produz? A quem ouvis e seguis? Não podeis seguir a dois senhores e viver
em paz...
Alexandre: Mas não sou cristão! Cobrais mudanças de tamanha
profundidade, esquecendo que quase nada sei desse Mestre a quem vos referis...
Parece-me que estais colocando esse mesmo Mestre como entrave entre nós!
Sinto-me perdido em
dúvidas... Por acaso compreendeis o custo resultante da
aceitação dos princípios que acabais de colocar?
Alexandre e Márcia Helena saem.
ATO
6.
DA DISPUTA COM O ORÁCULO.
Escutamos a risada zombeteira e sarcástica do
Oráculo.
Entram Oráculo e Alexandre.
Oráculo: Ora, ora... Estamos a sofrer... Bem que avisei! Tua
santinha já está a mostrar as garras cristãs! Acreditam em sofrimento, dores,
choros , ranger de dentes, caridade, pobreza... Por acaso julgastes que seria
diferente? Pois eu te digo, parafraseando o tal Mestre, em verdade te digo,
perderás tudo o que tens, amargarás penúrias e abandonos dos que importam no
mundo, serás apedrejado! E tudo por desejar uma mulher?! Cria juízo, meu amigo!
Mulheres há aos montes! E sem os problemas que essa santinha causará!
Ela insinua que eu engano os
consulentes? Mentira! Eu leio suas almas; exploro o que têm guardado no
recôndito de suas consciências! Ainda se tivessem coisas boas... E te digo
mais: se me perderes, nada serás!
Alexandre: Oh! Imensa luta travasse em meu interior! De um lado
as ilusões terrenas; do outro, as verdades espirituais. Ao privilegiar a carne
transitória, não mais poderei alegar ignorância da responsabilidade concernente
a um espírito encarnado! Com outras palavras e jamais tendo contato com Jesus,
Melquíades ainda vivo dissera as mesmas coisas alertando-me no tocante aos
tortuosos caminhos que insisto em trilhar!
Será que poderei esquecer tudo e
continuar sem o teu auxílio, Oráculo?
(...)
Alexandre: Jesus!
Nada sei a respeito do Rabi, a
não ser as informações repassadas por Márcia, impregnadas de emoções da
infância. Não seria Ele mais um falso profeta, como muitos que progrediam
naqueles tempos difíceis, enriquecendo-se com a ignorância do povo e a
ingenuidade dos simples e bem intencionados? Precisava ter certeza!
Estranha figura aquela, que se
entregara ao infame madeiro mesmo tendo o decantado poder de curar cegos e leprosos,
restituir movimentos a paralíticos, multiplicar pães e peixes, andar sobre
águas, ressuscitar! Teria realmente realizado tudo aquilo ou seriam meras
lendas, reforçadas por sua morte e fanatismo dos seguidores?
Roma continua a cultuar deuses
de mármore, magníficas e frias estátuas espalhadas pela urbe, templos e lares,
deuses com qualidades e imperfeições humanas...
Os cristãos não se revelam tão facilmente,
pois temem fatais represálias... Como descobrir a realidade?
O que sei é através dos prosélitos
do Nazareno: Ele marcou profundamente o coração dessas pessoas! Determinou
surpreendentes escolhas e mudanças incríveis em suas existências! Insanos,
loucos, temerários, ou detentores da Verdade?
Saem Oráculo e Alexandre.
ATO
7
À FLORIDA VIVENDA DA JOVEM
Entram Alexandre e Márcia Helena.
Ela recebe-o com confiante e tranqüilo abraço dos que
optam pelo amor.
Alexandre: Há dias não trabalho, abstendo-me de atender
importantes compromissos, sentindo-me inseguro, inepto. Vosso Mestre abalou-me
as estruturas mais intimas, roubando meu sossego. Maldito seja! Quero-vos, mas
tão somente a vós, não a esse profeta, misto de feiticeiro e líder religioso!
Se me amais, afastai-vos de tudo, rompei com essas crenças absurdas e vinde
comigo! Casaremos, teremos filhos, seremos felizes...
Perambula pelo palco, presa de
franca agitação.
Alexandre: Sois ingênua, tendes veneração pelo homem que
conhecestes há muito tempo! Sequer conhecei o risco que enfrentais, ligando-vos
aos cristãos, criaturas execradas, perseguidas pelas leis romanas! Sabeis o que
acontecerá caso sejais presa? A soldadesca não respeita as mulheres lindas
condenadas pelo crime de seguirem Jesus! Compreendeis-me? Acordai! Viveis em um
mundo à parte, enclausurada nesta casa confortável e rica, longe das pessoas
importantes, fugindo á vida... Credes que sereis bela para sempre? Que a
solidão não vos angustiará com o passar do tempo? O verdadeiro mundo, aquele do
qual fugis, é cruel! Necessitamos impor-nos, tomar posse daquilo que nos
pertence com fortes mãos e firme cabeça, à força, se preciso! Não me interessa
esse Jesus e muito menos o Deus que Ele tenta impingir-nos, único, sem estátuas
para o culto, que dá a seus filhos a cruz e o circo!
Tomado por estranha
energia,obstava-lhe as palavras conciliadoras.
Alexandre: Não sei o que está acontecendo comigo, mas
certamente não pretendo abdicar de tudo que construí e possuo! A faculdade de
servir como medianeiro entre dois mundos... Dizeis que devo utilizá-la para o
proveito e bem dos outros, sem auferir lucros materiais... Por quê?! Não me
disponho a trabalhar de graça para ninguém! Colocastes que a utilizo para
forçar vontades e alimentar ilusões? Que seja! Que mal há em fazer isso?
Somente atendo ao solicitado... Cobro por meu tempo! Até hoje, comportei-me
assim e tenho me saído muitíssimo bem!
Derruba estatueta e nem percebe.
Continua o agitado monólogo.
Alexandre: Amo-vos sim, mas não quero, não desejo mudar, não
pretendo renunciar a nada! Sou um mago, um feiticeiro, um conhecedor das forças
ocultas... E dos bons! O melhor! Por mim fala um espírito e ele assessora-me,
autorizando o ganho de muito ouro! Qual o problema?!
A moça chora silenciosamente.
Reconhece a inutilidade de qualquer pronunciamento. Estava transtornado, trêmulo,
irreconhecível. O Oráculo estava ali com ele, mas era quase impossível detectar
sua presença.
Márcia Helena: Pergunto-vos, através do espírito de minha falecida
irmã e vossa mãe que me inspira agora, pergunto-vos se porventura outros
espíritos manifestaram-se através de ti? Digo-vos, que caso permitas, um
espírito muito especial e querido em breve entrará em contato, estando
destinados a juntos desempenhar importante tarefa.
Entra Oráculo
Oráculo: Podes desistir, minha santinha! Achas que deixaria outro
qualquer chegar perto do corpo que me pertence por direito e conquista? Ele é
meu, meu, entendes?! Meu! Tu deves cair fora, caso queiras continuar a gozar de
boa saúde... Para teu próprio bem, afasta-te! Deixa-nos em paz!
A intuição retornou.
Márcia Helena: Pensas na figura luminosa de Jesus; sua ternura, seu
amor, sua sabedoria, sua paciência, sempre esperando de nós a mudança!
Alexandre muda a feição, como que
desperto de profundo transe.
Sai o Oráculo.
Alexandre: Que disse eu? Ofendi-vos? Sinto que deveria ter
cuidado melhor das palavras, embora não as recorde em absoluto!
Márcia Helena: Despreocupai-vos, meu caro. Estais ansioso, abalado
com as mudanças, nada de incomum. Hoje teremos uma reunião e estais convidado!
Vereis que somos pessoas comuns e que Jesus é a luz da libertação, jamais
motivo de constrangimento. Não me peçais para abjurar a fé que abracei, pois de
mim estareis tentando retirar o mais valioso, o pilar sobre o qual repousa o
equilíbrio de minha existência. Embora não concorde com a maneira como conduzis
a faculdade com a qual encarnastes, respeito-vos o livre-arbítrio. Acredito
que, conhecendo-nos melhor, colocando em nosso coração a doutrina do Mestre,
atingiremos um ponto harmônico na mutua convivência.
Saem Márcia Helena e Alexandre.
ATO
8.
OS ENCONTROS CRISTÃOS
A noite apresentava-se enluarada.
Estrelas tecem o dossel no escuro azul;
Brisas cálidas agitam as copas das árvores e espalham
perfumes do campo nos ares.
A carruagem venceu a distância que os separava de
Roma.
Acompanhava-os um único e hercúleo servo, também
adepto do Cristianismo.
Amarraram as rédeas a sólido
sicômoro.
Um caminho seguia disfarçado
entre a vegetação.
Mal discernido sob o luar que se derramava argênteo.
Os três por eles caminharam, notando que outros
silenciosamente os precediam.
Após meia hora, o casarão destacou-se sobre o céu.
Estava em péssimas condições! Pisando as folhas mortas que juncavam o chão,
chegaram ao átrio, onde tremeluzia a chama de discreto archote. O servo, sempre
à frente, conduziu-os a enorme salão.
Alexandre observa os detalhes do
prédio. Quem teria ali residido? Que sonhos aqueles salões teriam guardado?
Com sua aguçada sensibilidade
mediúnica, esticou a mão, tocando primoroso painel, fechando os olhos e
deixando a mente passear ao sabor das sensações. A voz sussurrante da jovem
fê-lo retornar ao presente, sugerindo que se colocassem em um dos cantos menos
lotado.
Somente então constatou que a
enorme sala estava praticamente tomada por silenciosas presenças, das quais,
com surpresa constatou, muitos eram representadas por romanos de nobre estirpe,
vestidos com simplicidade, misturando-se à plebe e aos escravos.
A naturalidade com que todos se
irmanavam impressionou-o sobremaneira, pois muito bem conhecia o rígido sistema
de castas que comumente imperava.
Um homem de alvos cabelos e
barbas destacou-se da multidão. Assume posição em improvisada tribuna. Vestes
rústicas e desataviadas: tratava-se de pessoa do povo, acostumada a labores
braçais. Certamente não tivera instrução metódica e formal, depreendeu
Alexandre, preparando-se para enfrentar uma palestra maçante e desprovida de
conteúdo.
A voz, ligeiramente titubeante a
principio, logo adquiriu firmeza, revestida de impetuosa energia, enquanto os
olhos calmos e ternos percorriam os que se arriscavam para ouvir os
ensinamentos de Jesus através de suas palavras de humilde discípulo. A inflexão
da fala tem algo familiar.
Discípulo: Meus irmãos, que Jesus esteja conosco, que sua paz
permita e revelação daquilo que nos há de melhor! Jesus, em suas prédicas a
multidões e em colóquios com pessoas em ambientes mais restritos, não se
cansava de alertar-nos sobre as quimeras e tentações do mundo, largas e
permissivas portas a nos afastarem dos verdadeiros objetivos da existência
terrena. Bens materiais e poder constituem dois dos maiores chamarizes
ilusórios do homem! Orai e vigiai, dizia o Mestre. E eu acrescento: olhai bem
para dentro de vós mesmos! Deixai cair as máscaras com as quais ocultais vossa
verdadeira face! Conhecei-vos e sabereis a companhia espiritual que atraís!
Vigiai para que o companheiro desencarnado que vos assiste não seja tão somente
deplorável reforço para vossas imperfeições, fascinando-vos a ponto de nublar a
visão dos fatos e das coisas. Pobres seres humanos!
Por outro lado, vezes sem conta
olvidais que sois espíritos em corpo de carne e, como tal, igualmente
influenciareis outras pessoas com vossas palavras, atos e pensamentos.
Quanto pagais ao Senhor vosso
Deus pelo dom recebido ao encarnar? Por acaso exige Ele pagamento? Então, com
que direito cobrais de vosso irmão? Por que vendeis o que gratuitamente
recebestes, mercadejando com a santa faculdade que permitiria auxiliar vosso
próximo, transformando-vos a existência em fonte de benção e alegria? Estais
cobrando pelo intercambio espiritual, semeando desgraça ao invés de luz,
afastando aos benfeitores que almejariam convosco trabalhar.
Alexandre esboça incomodo ao
ouvi-lo. O modo de falar, a autoridade revestida de amor.
Discípulo: Dinheiro, poder, sexo inconseqüente... As tentações
do mundo constituem chamamentos demasiado fortes, ameaçando a sagrada faculdade
de servir como intermediário entre o mundo dos encarnados e dos desencarnados,
levando-vos a colocar preço no trabalho obrigatoriamente gratuito, expulsando as
entidades evoluídas, que não se prestam a tais mercantilismos, cedendo lugar
aos espíritos levianos e ignorantes, bem ao gosto dos que julgam poder
servir-se do Mundo Espiritual.
Grassa por toda Roma o culto do
poder e do ouro, a idolatria do corpo, o exacerbamento das paixões; a febre dos
oráculos espalha-se, determinando o conluio de espíritos infelizes, encarnados
e desencarnados; mentiras camufladas com os ouropéis da vaidade e do orgulho
são repassadas aos consulentes, incentivando desatinos. O retinir do ouro e o
bafejo inebriante das lisonjas anestesiam vossas consciências! Jesus estará
convosco! Lembremos a parábola do Filho Pródigo e tenhamos a humildade de
retornar ao caminho reto, sabendo que o pai certamente nos acolherá com
alegrias e festas.
Que o Senhor nos ampare!
Alexandre precisa falar-lhe!
Empurrando, afoitamente solicita passagem até o discípulo.
Alexandre: Senhor!
Eles conversam e não ouvimos.
Discípulo: Um amigo, companheiro evoluído do além, auxilia-me,
pois muito pouco sei por mim mesmo. Como podeis ver, sou humilde, sem estudos e
preparação. Tenho tentado evoluir, mas ainda assim deixo muito a desejar... Que
fazer! Quando temos boa vontade e disponibilidade para a tarefa, Deus coloca em
nosso caminho benfeitores espirituais, mensageiros benditos que suprem nossas
carências, permitindo-nos atuar como seus instrumentos!
Alexandre: Sabeis quem são esses espíritos?
Discípulo: Não me preocupo com isso, meu amigo. Bata-me também
sejam discípulos de Jesus, dispostos a trabalhar e a servir em seu nome.
A volta para o campo foi
silenciosa.
Márcia Helena compreendia que o amado precisava de um
tempo para raciocinar e absorver as informações daquela noite. Também está
perplexa com o tema central da palestra! Vendo-o mergulhado em profundas
cismas, deixou-o entregue a si mesmo.
Saem Márcia Helena, Alexandre e os demais.
ATO
9.
ENTENDENDO A MEDIUNIDADE.
Entram Oráculo, Alexandre, Melquíades e Flávia.
Oráculo fala para Alexandre enquanto Melquíades e
Flávia ficam de longe observando.
Alexandre controla-se nos aposentos de dormir para não
descontrolar-se e destruir o primoroso quarto: jogar ao chão as preciosidades e
pisotear flores que enchem os vasos. A muito custo controla-se, enquanto a
entidade vocifera.
Oráculo: Ingrato! Criatura abjeta! Vais aos cristãos,
escuta-lhes as mentiras e absurdos e concordas com eles? Infeliz! Atreves-te a
comparar-me com esses espíritos ditos ignorantes? Leio teus pensamentos! Não
adianta negar! Quem te auxiliou, quem te tornou rico e famoso?! Eu! És obra
minha e, como tal, a mim pertences, a mim! Não penses que me afastarei, antes
prefiro destruir-te...
Alexandre sente náuseas no estômago,
entontece-lhe a cabeça e ele vê-se obrigado a deitar-se no frio chão para não
desfalecer. Lembrou-se das palavras da amada quando dissera que suas crenças e
valores estavam naufragando irremediavelmente.
É então que nos aposentos,
imersos na penumbra da tênue candeia, iluminam-se com safirina luz e Alexandre
enxerga duas criaturas avançando suavemente até ele.
Melquíades sorri enquanto conduz
pela mão a lindíssima Flávia. Seus imensos olhos verdes brilham em meio às
lágrimas, envolta em alvas vestes, com longos cabelos negros recolhidos em
grossa trança entremeada de níveas e perfumadas florezinhas.
Melquíades: Filho, recorda as vezes em que te disse que o corpo
físico anestesia o espírito, impedido-o de ver claramente? Imagina a minha
vergonha quando, ao desencarnar, encontrei aquela a quem eu chamei de mãe
desnaturada, monstro de insensibilidade, criatura sem entranhas, descobrindo
que a criatura fora uma pobre vitima também! Julguei-a, repassei-te idéias
errôneas... Fiz com que a odiasses! Fui cego! Perdoa-me a ausência de bom
senso! Ela, aqui, estendeu-me os braços agradecendo por haver-te criado. Juntos
temos velados por ti. Nunca é tarde para reconhecer os erros e efetuar
necessária reparação. Reconheceste-me nas falas do orador esta noite, embora
temesses aceitar minha presença. Estranhas que eu conheça os ensinamentos de
Jesus? Tolice! Jesus veio relembrar-nos das leis: ensinar aos homens que as
haviam deixado para trás, desviando-se dos verdadeiros caminhos evolutivos do
ser. Agora, essa moça linda e doce, tua mãe, falará contigo...
Flávia: Tens medo, meu filho? Temes as represálias do espírito que
acreditavas teu amigo e benfeitor? Asserena-te, pois mudanças de atitudes e
pensamentos constituem vigorosos antídotos contra a manipulação de companheiros
espirituais menos felizes. Raciocina, meu filho. A partir do momento que te
dispuseres a servir a Jesus, entrarás em faixa vibratória que te defenderá das
forças do mal e do assédio obsessivo. Teus pensamentos, voltados para o Mestre
e sua seara, afastarão os que quiserem atingir-te.
Os conflitos são perfeitamente
normais, inevitáveis e extremamente benéficos, constituindo o prenúncio de
mudanças. O medo é saudável, na medida em que defende nossa integridade, mas a
mudança, não obstante todas as instabilidades e inseguranças que a acompanham
momentaneamente, torna-se imprescindível, entendes?
Superar obstáculos, derrubar o
que já não satisfaz, reconstruir, evoluir... Nesse processo todo, a decisão
continua sendo pessoal e intransferível. Somente tu poderás empreender a
caminhada, não podemos obrigar-te a nada, somente sugerir, aconselhar, esperar
e amar...
Alexandre e Flávia abraçam-se.
Saem Melquíades e Flávia.
A candeia sobre a mesinha de
mármore apaga-se. O quarto fica imerso em escuridão. Adormece
Alexandre ainda vestido.
ATO
10.
POR UMA VIDA SIMPLES E
HARMÔNICA.
Amanhecia de forma fresca e radiante.
Ligeira chuva na madrugada levara a poeira das
plantas e as gotas d’água ainda tremulavam aqui e acolá, quais diamantes.
Alexandre sai para extensa varanda.
A lembrança do pai adotivo,
fugindo às perseguições dos poderosos, perseverando em sua honradez e
integridade, negando-se a compactuar com crimes e desmandos, traz-lhe comovidas
lágrimas aos olhos. Como o compreendia agora! Como conseguiria reparar tantos
danos?
Entra Márcia Helena com uma
cesta de vime com o desjejum para dois e sentam-se a relva.
No silencio do bosque, somente
quebrado pelo murmurar das águas e trinados dos pássaros, conta-lhe.
Alexandre: Ontem, no escuro do quarto, conversei com Flávia,
minha mãe, e também com Melquíades, meu pai adotivo! Foi doce, sublime e
esclarecedor!
Ainda não sei nada sobre o
Cristo que a encanta, mas isso não mais é um obstáculo ao nosso relacionamento!
Eu fizera mau uso da faculdade e
dos ensinamentos do meu pai, mas decidi colocar um ponto final no vinculo que
tenho com a entidade chamada Oráculo! Não se trata de ingratidão, mas de
mudança de conceitos! Percebi que os seus conselhos, na medida em que lesam as
pessoas, prejudicam todos os envolvidos! Dinheiro? Sim, é importante, mas não
ao ponto de coagir-me ao erro! Iremos viver com menos, mas de forma honesta.
Retornarei a Roma imediatamente e imprimirei novos rumos e critérios a minha
atuação profissional. Se necessário for, imitarei Melquíades, mudando para ter
sossego! Recomeçando, alhures, obscura e honradamente!
Entenda que enfrentaremos
dificuldades, meu amor! Minha posição nos cobrará imposições sociais, serei um
estranho no ninho! Sinto-me assim mesmo, sendo um cidadão romano com destacada
posição social e reconhecido nos melhores círculos da sociedade!
Vejo-me defrontado agressões
verbais, ataques físicos e represálias. Meus clientes não querem saber de
questionamentos morais e éticos, somente estão preocupados com o atendimento de
seus desejos!
O Cristo pouco a pouco encontra
guarida em meu coração: preenche os espaços vazios e inúteis, deflagra uma
premente necessidade de atuar junto ao próximo com desinteresse e amor!
Agora penso, minha querida,
posso terminar em uma prisão infecta ou morto em traiçoeira cilada! Sou
repositório de segredos e tramas tenebrosas, resultados dos tempos de convívio
e convivência. A partir do momento que nego-me a continuar nas trilhas da
devassidão, colocam-me em lado oposto, constituo sério risco para os envolvidos
nas deletérias façanhas de antanho!
(...)
DA
PRISÃO DE MÁRCIA HELENA
Visando atingi-lo, influentes
personalidades aprisionam Márcia, acusando-a de compactuar com os cristãos em
práticas religiosas proibidas ao Estado., açambarcando-lhe o rico patrimônio.
Alexandre em visita a prisão.
Márcia Helena: Preocupais-vos com nos bens?! Nada velem para mim...
Se Deus permite que nossos algozes deles tomem posse, a única razão plausível
deve repousar no fato de não serem necessários... Ou talvez não nos pertençam
por direito moral... Quem sabe? Não importa! Somos fortes, saudáveis, cultos...
Não precisamos do ouro acumulado por nossos ancestrais para viver! E muito
menos para sermos felizes, meu amor!
Alexandre: Mas não é justo! Roubaram-vos!
Márcia Helena: Na realidade, meu querido, nada de material pertence
a nós... Muito menos os bens herdados, que foram ganhos com o suor e a força de
vontade de outros. Somos somente depositários, cumprindo-nos o dever de bem
gerenciá-los e revertemos as bênçãos do muito que temos em prol dos desfavorecidos.
Até hoje, iluminada pelos ensinamentos de Jesus, assim tenho feito. A partir de
agora, desprovida de ouro, darei do pouco que obtiver com meu trabalho!
Alexandre: Estais presa! Como saireis daqui, se motivos
pessoais envolvem vossa prisão?
Márcia Helena: Confiai, meu amor. Confiai em Deus e Ele mostrará o
caminho...
Três dias depois, as autoridades
corruptas libertaram a jovem, acreditando que a lição dobraria a cerviz do
casal. Retiveram-lhe o imenso patrimônio. Na mesma noite da soltura,
acobertados por escura e tempestuosa noite, Márcia Helena e Alexandre
abandonavam Roma, decididos a anonimamente recomeçar bem longe dali, em paz e
com dignidade.
RECOMEÇO
DISTANTE DE ROMA.
A aldeia era pequenina e pobre.
Sufocada pelo domínio romano,pagando
caros impostos sobre o que produziam, pouco restava aos seus habitantes. Havia
fome e doenças, ignorância e desesperança. Receberam-nos com ares de
indiferença, avaliando igual penúria por seus poucos pertences e roupas
simples.
Assim que o casal montou a
pequenina loja em casa abandonada, quase uma tapera na saída do vilarejo, a
natural curiosidade manifestou-se. Nunca haviam visto tantos pergaminhos e
vidros.
Conquistados pela alegria e ternura de ambos,
trouxeram presentes de boas vindas: queijo, pão, frutas, um pote de mel...
Chegavam timidamente, depositando nas níveas mãos da
moça o mimo, retirando-se rápido, embora morressem de vontade de perguntar para
que servia toda aquela parafernália.
Aguardavam os primeiros
clientes. Eles não chegavam. Alexandre impacienta-se. Teriam errado de local?
Pereceriam de fome? Talvez devessem fazer alguma propaganda ou quem sabe partir
para outros lados.
(...)
Naquela manhã, trazendo ao colo
uma criança, a mulher adentrou a sala impecavelmente limpa pela jovem esposa
que também a adornara com flores silvestres colhidas bem cedinho.
Fitou o moço alto e muito belo
com angustiosos olhos, simplesmente estendendo o filho, em muda súplica. Nada
mais poderia fazer por ele, embora seu coração de mãe assim o desejasse! Ao
antigo feiticeiro de Roma bastou olhar o doentinho para ver os inequívocos
estertores de morte.
Foi então que Alexandre viu
Melquíades saindo do aposento escuro, sorrindo, dizendo-lhe com voz que somente
ele escutava.
Melquíades: Filho, por que te afliges, julgando não haver
solução para o problema? No serviço do Mestre, jamais estamos sós e podemos
muito mais com Ele do que imaginas! Vês o frasco à esquerda, na prateleira do
meio? Pois bem, acrescenta-lhe o pó que está no frasco abaixo, agitando muito
bem. Dá de beber à criança enferma metade do conteúdo. Dormirá profundamente,
restabelecendo-se em
dias. Quando ela acordar, terá fome... A mãe precisará de bom
caldo para alimentá-la e não tem com que fazê-lo...
Tua esposa está a prepará-lo.
Falei com ela antes de vir a ti...
Assim aconteceu.
O casal raramente recebia em
moedas, pois todos eram muito pobres, contentando-se com alimentos e utilidades
de toda espécie. Quando a matéria prima para os medicamentos começava a
escassear, providencialmente surgia algum abastado consulente.
Com o tempo, os dois
compreenderam que jamais passariam por privações, muito embora não houvesse
luxos ou supérfluos.
Suavemente Jesus entrou na vida
da pequenina comunidade e das circunvizinhanças, através dos ensinamentos
ministrados pela exemplificação de Márcia Helena e Alexandre.
Muitos filhos advieram da feliz
união, espalhando-se em novas famílias, todos apaixonados pelo Mestre da
Galiléia, todos médiuns.
Espalhou-se alegria e amor.
FIM.
(...)